ARTIGOS

De que Brasil estamos a falar, quando falamos do Brasil?

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 03/03/2024 às 08:19

Às vezes me surpreendo com o que leio e ouço sobre o Brasil. Ainda esta semana, soubemos que o PIB cresceu praticamente 3% no ano de 2023. Anunciou-se timidamente que ultrapassamos o Canada e passamos a ser a nona economia mundial.

Noves fora a China, que não é farinha do mesmo saco, apenas a Índia, dentre os países chamados em desenvolvimento, está à frente de nós.

Os progressos visíveis na renda familiar e no nível de emprego formal são indiscutíveis. Faz pouco tempo, os arautos da economia brasileira apregoavam a necessidade imperiosa de reduzir salários e direitos do assalariado, se quiséssemos nos comparar às novas tendências do capitalismo moderno.

Fazer o oposto seria um esquerdismo infectocontagioso. Curiosamente, Biden e Lula se engajaram num programa de valorização do trabalho formal e, não tão curiosamente, os Estados Unidos da América retomam crescimento econômico notável. Será que os Estados Unidos adernou à esquerda? Será que Paul Krugman, virou um marxista ou um stalinista, como Stiglitz?

Não deixa de ser relevante lembrar que tanto Biden quanto Lula sucedem a dois presidentes que se notabilizaram por proporem, tanto lá quanto cá, uma nova forma de governo em que a Democracia seria vertente de autoritarismo atentatório ao Estado Democrático de Direito.

Também me parece relevante recordar que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, acusaram o “sistema" de ser o elemento desagregador não só da economia, mas também das pautas de conduta civilizacionais, criando-se assim, lá e cá uma, inédita miscigenação entre o religioso e o político.

Se nos Estados Unidos historicamente o preconceito racial já nos parecia uma anomalia teratológica, a transferência do ódio entre irmãos aqui no Brasil destruiu em pouco tempo nossas crenças numa sociedade cordial, apregoada como natural e quase genética em nossos livros de história e religião.

Tanto é verdade que o movimento chamado “Façamos a América Grande outra vez”, uma espécie de evangelho segundo Trump tem um inegável substrato racista ao defender a supremacia branca. Trump nunca escondeu seu ódio visceral a Obama, acusando-o inclusive de ter seu atestado de nascimento falsificado.

Difícil afirmar que o Trumpismo seja exclusivamente fruto do esgotamento do neoliberalismo, movimento que desde Thatcher e Reagan se havia arvorado em última etapa do capitalismo, fazendo naufragar as teses social-democratas ou o próprio keynnesianismo.

O que se pode afirmar sem sombra de dúvida é que desde a crise e a consequente quebradeira financeira de 2008, ficou claro que o neoliberalismo havia tornado os ricos mais ricos os pobres mais pobres e os remediados sem capacidade de pagar suas hipotecas.

O “Make America Great Again“ talvez seja a fórmula mais palatável para equilibrar de um lado os crescentes lucros dos super-ricos com a fantasia de que a classe média americana recuperaria seu "american way of life” do pós-guerra, quando a Europa se reconstruía e o Japão saía das cinzas. Ou, em outras palavras, quando a economia americana era imbatível.

Obviamente, como se está vendo, esta saída do neoliberalismo se alimenta de um nacionalismo exacerbado, com claras conotações fascistas, onde a primeira vítima é o Estado Democrático de Direito.
Os movimentos de invasão do Capitólio, nos Estados Unidos da América, e dos Palácios dos Três Poderes, em Brasília, são irmãos siameses da mesma má retórica.

Então, para finalizar, quando pergunto de que Brasil estamos a falar, me surpreende que os conservadores deste país - que respeito tanto quanto quaisquer outros cidadãos - não se deem conta que nossa Constituição de 1988, costurada após uma negra noite de autoritarismo, pautou de forma inatacável os parâmetros de uma sociedade democrática como a que estamos a construir, com as derrapagens que todos conhecemos, dentre as quais as que hoje ocupam as manchetes de nossos jornais.

Precisamos falar sobre a Constituição brasileira de 1988. Nela reside nossa restauração cívica e nossa convivência social. Além de nossa tolerância religiosa. Voltarei ao assunto.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado