ARTIGOS

Garibaldi ou balde de gari?

Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]

Publicado em 28/01/2024 às 07:20

Alterado em 28/01/2024 às 11:20

Tive um professor de história no final do curso secundário que nos advertia sempre sobre a diferença entre o preciso e o impreciso, o certo e o provável, o sonho e a realidade e resumia essas lições de sabedoria com a frase que escolhi para título deste nosso encontro de hoje.

Era um homem a nos alertar sobre a tentação do discurso pseudo-científico a nos seduzir muito mais com a forma do que com o conteúdo, muito mais com a retórica pomposa do que com a sóbria exposição da realidade a ser compreendida. Chamava-se Tarlé e foi meu professor no Externato São José, hoje infeliz e constrangedoramente desfigurado pela carnificina imobiliária no Rio de Janeiro.

Tive professores que, independentemente das matérias lecionadas preservavam um evidente compromisso em nos alertar sobre os artifícios da linguagem, ideologizada ou mercadológica, e nos chamavam a atenção para a ética envolvida no discurso, principalmente no discurso político. Tive uma educação que deveria ser o objetivo de nossa política educacional pública e escrevo por que acredito que esses parâmetros podem e devem ser transferidos com honestidade, transparência e humildade, pois todo conhecimento se renova a cada dia no diálogo entre homens realmente interessados num mundo melhor.

Lembrei-me desses professores ao ouvir o candidato do Partido Republicano dos Estados Unidos da América repisar frases certamente impactantes dirigidas a seu eleitorado, mas que finalmente parecem estar provocando a reação que já deveriam ter provocado faz muito tempo.

Revistas e jornais de coloração política conservadora como o "Economist", por exemplo, dedicaram editoriais e colunas de opinião a denunciar o risco que o Ocidente estará correndo se eventualmente Donald Trump for reeleito.

A cada dia mais arrogante, Trump não esconde seus propósitos de montar um governo nos Estados Unidos não só autocrático e invasor dos Direitos Fundamentais da Cidadania, mas também claramente vingativo em relação a eventuais adversários políticos.

Aqui mesmo, no Rio de Janeiro, o “O Globo” publicou na sexta-feira 26 um editorial absolutamente pertinente sobre os riscos de uma nova administração Trump.

Espanta ainda escutar brasileiros que depositam esperança num revigoramento dos princípios democráticos a ser trazido por Trump.

O primeiro mandato de Trump só nos gratificou com tapinhas nas costas de autoridades brasileiras que o bajulavam. De prático, Trump aumentou as tarifas americanas na importação do aço brasileiro e nos mandou assobiar e chupar cana. Na Pandemia, nos mandou um encalhe de placebos.

Trump 2025 nos promete uma relação comercial bilateral muito mais complexa com fortes manifestações de protecionismo, impensáveis desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As condicionalidades a nos serem impostas por Trump farão a ALCA parecer uma brincadeirinha de jardim de infância. Com Trump, as regras da OMC serão ainda mais desequilibradas em propriedade intelectual e em transferência de tecnologia. E acordos bilaterais de comércio leoninos serão os bitcoins dos cassinos das relações econômicas.

Trump teve sua política de comércio exterior descrita para quem quiser ver em livro publicado por seu ex-responsável pelas negociações internacionais, Robert Lighthizer. A resenha do livro aparece no número de Janeiro de 2024 da revista “Foreign Affairs“ e deveria ser leitura obrigatória por todos que tenham alguma preocupação com o comércio bilateral Brasil-Estados Unidos. (vide Washington New Trade Consensus and what it gets wrong.)

O que o "Foreign Affairs" não diz é que a política econômica externa dos Estados Unidos tenderá a dificultar em muito nossas relações com a China que, queiramos ou não, é hoje nosso principal comprador. As objeções de Trump à manutenção de nossa liberdade de importar tecnologia chinesa são mais do que previsíveis e, para tanto, ele não hesitará em alegar supostas razões de segurança hemisférica para desviar nosso fluxo comercial para os exportadores americanos. E possivelmente, se bobearmos, ainda corremos o risco de sanções unilaterais.

Em suma, já vivemos essas barbaridades no passado, em que a América do Sul nada mais era do que quintal americano. Os tempos para Trump são claramente retrógrados em matéria de Direito Internacional e as regras pactuadas em organizações internacionais são confessadamente recusadas e ignoradas pela nova geopolítica americana.

Faço essas advertências porque vejo em muitos analistas políticos brasileiros o queixume habitual sobre as posições tidas como retrógradas de nossa politica industrial, recentemente levada ao conhecimento público pelo próprio vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, politico brasileiro que compreendeu, desde a primeira hora, a importância de um governo de Frente Ampla no Brasil.

Embora, tenha sérias dúvidas sobre a eventual reeleição de Trump, deveríamos nos preparar para o pior cenário. Um eventual eixo Milani-Trump poderá atrasar em muito uma efetiva cooperação entre o Mercosul, caso não o destrua definitivamente. No cenário de retrogressão e demagogia que se desenha, o interesse nacional nos obriga bem pesar as consequências de nossas opções democráticas. Enquanto elas existam. A proposta Trumpista, sejamos claros, nos leva a uma subordinação quase colonial .

Causa particular preocupação que setores exportadores e industriais se acreditem a salvo das reformulações das regras do jogo em gestação no radicalismo trumpista.

Infelizmente, continuamos a ter uma visão saudosista de um comércio livre que nunca existiu, a não ser naqueles que insistem em confundir Garibaldi com balde de gari.

Ou, o que é muito pior, confundir interesses nacionais permanentes com as oscilações governamentais de países por mais amigos que nos pareçam.

 

*Embaixador aposentado