ARTIGOS

Com papas na língua

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 21/01/2024 às 08:08

E não é que no meio de tanta turbulência nos vem de Roma, mas precisamente do Vaticano, uma surpresa inédita, uma carícia inesperada do Papa Francisco!

Que me lembre, nunca vi tanta coragem de um Papa ao abordar as vicissitudes humanas, seus lados claros, seus becos escuros. E, ao mesmo tempo, nos fazer parar e nos perguntar por que nenhum outro Papa havia conseguido derrubar o muro de lamentações entre a Igreja e a humanidade.
Quem e em que tempo terá ouvido de um Papa afirmação de que a Igreja, a teologia cristã, nada tem contra o sexo? Quando uma frase como esta ou ligeiramente semelhante a esta nos levou a rever tantas incompreensões sobre a natural complexidade do terreno e do divino? E fez do amor, na sua expressão carnal, uma evidente manifestação não de uma bestialidade pecaminosa mas de uma sintonia fina de nossos lados mais profundos de transcendência e comunhão?

Estamos a viver certas formas de religiosidade, em nome de uma suposta pureza espiritual, a nos roubar, na convivência humana, até mesmo a tolerância do outro, com suas imperfeições, suas quedas ou, pior ainda, com suas preferências políticas, apequenando-nos diante do humano e do divino.

A palavra de Francisco teve até o impacto de nos fazer absorvê-la sem espalhafato e desceu sobre nós como um manto tranquilizador a espantar pensamentos recessivos e cenas imaginárias de uma culpabilidade inata, inapagável de um pecado absolutamente perturbador porque associado à emoção da afinidade com o outro, o desejo irreprimível da unidade, ainda que fugaz.

Vejo em Francisco o melhor Papa de minha vida. Vivi os primeiros anos sob o papado de Pio XII, marcou minha juventude a mensagem de João XXIII, mas é com Francisco que sinto uma inegável e discreta metamorfose da Igreja Católica não só ao assumir com coragem os desmandos de escândalos financeiros e desvios na educação de jovens, com abertura de processos judiciais mundo afora, mas também com um "mea culpa" diante do impacto desses traumas sobre a comunidade católica. De que nem a Cúria escapou.

A cada dia Francisco se torna um líder referencial para católicos e não católicos, praticantes ou não. Sua firme condenação aos morticínios das guerras, algumas com tonalidades religiosas evidentes, revela uma notável clarividência sobre os riscos que corremos de nos autodestruirmos pelo abandono do Direito humanitário, sempre associado à dignidade humana.

Neste ano de 2024 vejo alguma semelhança entre nossos antepassados que, imbuídos de uma ousadia sem par, resolveram erigir uma Torre, expressão máxima da tecnologia de então, com a fútil ilusão de atingir o céu.

Não será nossa Torre de Babel a Inteligência Artificial que ainda nem sequer nasceu e já prolifera no submundo do calote e da mistificação ? Não será a Inteligência Artificial muito mais artificial do que inteligente e não nos poderá levar ao mesmo estado confusional da proliferação de línguas na Torre de Babel?

Não estaremos nos aprofundando na espiral de um labirinto, ao fazer de nossos sistemas econômicos usinas poderosas de enriquecimento abusivo de uma minoria cada vez mais opulenta diante de uma maioria cada vez mais despossuída?

Este ano de 2024 nos coloca diante de uma dilacerada e talvez definitiva disjuntiva. Os sinais estão evidentes. Um deles, as mega manobras militares da OTAN, forma vicária de reassumir uma liderança a cada dia mais precária é uma intolerância óbvia a um mundo efetivamente multipolar.

Outro sinal mais do que perturbador é a possível reeleição de Trump nos Estados Unidos da América com um projeto anárquico-nacionalista e arrogantemente adverso aos princípios de liberdade e de Democracia que seu país se esmerou em semear Ocidente afora e que Trump renega em nome de um capitalismo antropofágico, um segregacionismo visceral, adubo fértil de uma guerra fratricida.

Neste cenário, o Brasil terá opções a fazer e temos oportunidades óbvias e dificuldades crescentes, essas últimas importadas por uma ideologia absurdamente refratária aos nossos legítimos interesses de crescimento material e espiritual. Um ano em que voltaremos às urnas mais conscientes do que nunca dos impactos de nossas decisões na construção ou não de uma sociedade fraterna e produtiva.

Nada me anima mais do que dialogar com os leitores sobre meios e modos de combatermos com racionalidade as forças obscuras que se alastram entre nós sob um verniz moderno, mas a nos regredir como cidadãos e como gente às mesmas ideologias de super-homens que nos levaram à guerra. Uma patética regressão, um desvio soturno da história, a falência de nossa geração dos 40. Talvez, do planeta, que em nosso desmesurado parasitismo, sugamos até transformá-lo em bagaço bichado.