ARTIGOS

08/01/2024. O rastro da serpente

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 11/01/2024 às 09:23

Alterado em 11/01/2024 às 09:23

De tudo que se disse sobre a tentativa de golpe contra a Democracia brasileira, duas informações me impressionaram. A primeira nos foi revelada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Barroso. A segunda foi o impacto de um dado estatístico.

Em seu discurso na cerimônia sobre o primeiro aniversário do Dia da Infâmia, o Ministro Barroso contou que os destruidores do patrimônio físico do Supremo Tribunal Federal se ajoelhavam e agradeciam aos deuses após cada objeto decepado.

Como o Presidente Barroso, também me indaguei que tipo de religião poderia abençoar atos tão sacrílegos a nossa história e a nossa cultura . Os depredadores dos prédios-símbolo de nossa República estariam intoxicados de uma beberragem psicodélica em que a mente se distorce de tal forma que a psicopatia floresce como cogumelo no cérebro?

Tão chocante, tão fora de nosso universo de respeito por nossas tradições, de reverência por nossos símbolos nacionais- inclusive a bandeira brasileira- e ritos religiosos que só poderiam provocar, como confirmado por pesquisas de opinião pública, a quase unânime repulsa da cidadania. Este o dado estatístico irrefutável. A população brasileira rejeitou de forma quase unânime a insanidade do oito de janeiro de 2023.

Não é difícil perceber que a repulsa nacional aos atos bárbaros levaria, como de fato levou, à incapacidade de se acreditar que qualquer político pudesse ter estimulado ou sequer aceitado tanta lamaceira cívica, tanto ódio entre irmãos.

A aceitação de culpabilidade se torna impossível para milhões de pessoas ,porque admitir essa verdade teria o efeito desastroso de fazer delas cúmplices de um ato degenerado, fratricida, que jamais conscientemente buscaram. Torna-se mais fácil aquietar uma consciência ingênua projetando no outro, no rival político, a ignomínia.

Quando se compara a invasão das sedes dos tres poderes em Brasilia com a invasão do Capitólio nos Estados Unidos da América ,podemos ver a identidade, o plágio especular da outra. Nos Estados Unidos se pretendia enforcar em praça pública Mike Pence por se ter recusado a aceitar o golpe constitucional de Trump. Aqui se pretendia enforcar o Ministro do Supremo mais destemido diante da subversão institucional.

As semelhanças entre o oito de janeiro e a invasão do Capitólio deveriam nos levar a reconhecer , como aliás já está sendo reconhecido por analistas políticos norte-americanos de inquestionável competência, que o Brasil soube defender suas instituições democráticas com muito mais eficácia e respeito constitucional do que os Estados Unidos.

A novela constitucional que se arrasta nos Estados Unidos com a arrogância patológica de Trump diante das cortes americanas, a sucessão de crimes financeiros e comerciais por ele cometidos, sua pregação contra as autoridades judiciais e policiais de seu país corroem a credibilidade internacional dos Estados Unidos. E o joga na vala racista da supremacia branca,rota incontornável da violência. Talvez, da guerra civil.

E o que assusta em Trump é o seu descompromisso com a realidade. Difícil separar o Trump dos shows televisivos em que ele encarnava um ser onisciente e onipotente sempre concluindo suas frases com um intimidador “ You are fired”. (você está na rua; ponha-se daqui para fora, em português claro ) . Trump transformou o Partido Republicano num teatro de marionetes em que ele manipula as cordinhas do ódio e do terror.

Consciente da perda do poder aquisitivo das classes antes protegidas por leis trabalhistas e por negociações coletivas salariais, Trump assume nos Estados Unidos o figurino do profeta tão conhecido nosso de que o “ Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão.”

Trump, nada mais é do que um Antonio Conselheiro com brilhantina no cabelo. Sua proposta de fazer a 'América grande outra vez" passa por conceitos racistas e defende uma volta dos piores movimentos segregacionistas. Trump transformou o imigrante estrangeiro num espoliador. O mexicano foi publicamente chamado de estuprador em comício político . Há algo mais baixo do que isto?

Temos a obrigação cívica de não cair neste conto de vigário contra nossos interesses nacionais. Nada no Brasil tem o mais leve odor fétido trazido pela supremacia branca. Somos uma sociedade miscigenada, muito obrigado.

A mais do que evidente capacidade de financiamento de Trump, alimentada por fontes sempre associadas ao que de mais perverso existe no sistema econômico americano, deveria nos alertar para os riscos que corremos ,caso o eleitorado americano volte a sancionar a política de ódio pregada por Trump.

Nos anos 60 do século passado, tornou-se famosa uma frase de um político brasileiro: “ o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” . Os que contestavam a frase eram considerados ingênuos na versão mais benévola ou comunistas, na versão mais frequente.

Hoje, o que é bom para Trump é péssimo para a Democracia. Trump quer nos convencer que a boa religião é anticristã, anti nosso tradicional sincretismo religioso em que São Jorge, Iemanjá e os ritos de nossos antepassados africanos se mesclam pacificamente em nossa cultura. Nada é mais agressivo ao bom senso brasileiro do que importarmos religiões cujos evangelhos são escritos com tintas tingidas de sangue.E em que fiéis ,supostamente dóceis a deuses, são profundamente despidos dos mandamentos de amor solidário cristão e da solidariedade cívica que nos impõe a Carta Constitucional de 1988.

A seguirmos nessa toada em que se mistura no mesmo balaio uma religiosidade sacrílega com uma autocracia totalitária responsável pela mortandade das guerras do século 20 nunca nos livraremos de nossos fantasmas e de nossos instintos destrutivos.

Nunca estivemos tão próximos de um 8 de janeiro irreversível. Nunca precisamos tanto de um inabalável bom-senso . E isto começa neste ano de eleições municipais. Ano de aprofundarmos nossa frente ampla. Pacífica. Construtiva. Democrática.

Só a retomada de nosso caminhar democrático em favor de um Brasil mais justo socialmente poderá nos livrar de um retorno ao colonialismo tolerado e até desejado por elites parasitárias incrustadas em nosso passado escravocrata.