ARTIGOS

Vozes e lugar de fala

Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]

Publicado em 17/12/2023 às 08:19

Combinei comigo mesmo que até fim do ano não abordaria nesses nossos encontros dominicais assuntos políticos, principalmente guerras, eleição nos Estados Unidos da América e outras mazelas a circular pelo mundo como roda-gigante de parque de diversões abandonado.

Mas abro uma exceção para a aprovação ontem (escrevo no sábado) da reforma tributária pelo Congresso Nacional. Claro que a reforma tem aqui e ali falhas e os puristas talvez se inquietem com o que consideram eventuais arritmias (a não aprovação de taxação especial para armas e munições certamente é uma das que considero lamentáveis), porém sem desequilibrar o todo, que é reconhecidamente melhor do que o sistema atual.

Não pretendo aqui fazer análises sobre os novos dispositivos tributários, não só porque me faltam engenho e arte para fazê-lo, mas também porque me interessa assinalar os progressos neste ano, apesar de sobressaltos múltiplos.

Mas, gostaria de conversar com você hoje, estimado leitor, e muito especialmente com você querida leitora, sobre a decisão da Fuvest de exigir dos candidatos ao vestibular da USP a leitura obrigatória de livros escritos por autoras brasileiras. Durante dois ou três anos, se entendi bem, os livros obrigatórios para os vestibulandos serão exclusivamente de autoras e os autores ficarão na geladeira.

Tenho sentimentos ambíguos sobre esta decisão. Se de um lado reconheço que se deva prestigiar autores brasileiros, sejam eles mulheres ou homens, me provoca inquietações essa tendência a se disseminar de que o sexo das pessoas ou a cor da pele promoveriam um "lugar de fala” autônomo a exigir ou impor um quase segregacionismo cultural no qual não vejo sentido.

Reconheço que a vivência de uma pessoa pode muito influenciar sua visão de mundo e admito até que esta vivência seja muito útil para aprofundar certos aspectos do personagem. O primeiro exemplo que me vem a cabeça é o de Rubem Fonseca, que nos deixou maravilhosos contos e romances onde o submundo marginal muitas vezes é fio central do enredo. Bem verdade que Rubem Fonseca teria sido delegado de polícia e certos detalhes de seus contos deixam bem transparecer, até mesmo no jargão ou no vocabulário, sua intimidade com a gramática do crime.

O que me incomoda é a insistência de alguns em praticamente exigir ou impor que o autor, para ser autêntico, deva sempre ter um elo ou eixo de vida entre seu texto e sua vivência pessoal. Acho honestamente que essas novas tendências, por mais que tenham uma legítima intenção de dar acesso a minorias ao palco da literatura, talvez contribuam mais para compartimentalizar do que universalizar o prazer eloquente da boa leitura.

Nos meus tempos de jovem, por exemplo, se julgava “esquisito" quando um homem se dedicava à poesia, território então considerado exclusivo de senhoritas ou senhoras. Ora, estão aí os nossos Carlos Drumond de Andrade, João Cabral de Melo Neto a mostrar a força da poesia em mãos masculinas. Igual exemplo, este já mais vinculado ao território de vida de um autor, nos é dado pela obra de Guimarães Rosa, homem que nos surpreendeu pela vivência sertaneja, sendo ele próprio um requintado homem do mundo, diplomata de escol, especializado em nossos problemas de fronteira.

Faço toda esta digressão porque aplaudo a iniciativa da Fuvest de estímulo à cultura de nossos jovens, homens ou mulheres, que muitas vezes chegam à Universidade sem o mínimo conhecimento da importância de nossa literatura. Gostaria apenas que a Fuvest examinasse a possibilidade de incluir em suas listas de leituras obrigatórias livros de novos autores brasileiros que estão a ganhar ou disputar prêmios em inúmeros concursos literários.

A Academia Brasileira de Letras costumava premiar anualmente um escritor brasileiro, honraria que talvez seja a maior a que se possa aspirar. Aliás, me parece um dever de todos nós reconhecer o trabalho cultural da ABL com seminários semanais em sua sede. Porém, o que infelizmente pouco se conhece é a Revista da ABL que se tornou em pouco tempo uma referência obrigatória na cultura de nosso país. Responsável por sua direção de conteúdo, a acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira já produziu uma dezena de números temáticos de inquestionável importância. É o de que melhor se publicou neste ano.

Fora isso, apenas sugiro ler (ou reler) as grandes mulheres personagens da literatura brasileira e universal: Capitu, Ana Terra, Ana Karenina. E escritoras como Clarice Lispector, Lígia Fagundes Telles e Marguerite Yourcenar.

Esta última, que jamais pisou na Roma antiga, jamais vestiu um uniforme de soldado, escreveu o romance “Memórias de Adriano”. Maravilhoso desrespeito ao decantado lugar de fala.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado