ARTIGOS

Uma armadilha bíblica

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 29/10/2023 às 08:24

Alterado em 29/10/2023 às 08:24

Celso Amorim deu uma interessantíssima entrevista esta semana para Roberto D’Avila. Está nas plataformas e merece a atenção dos que se interessam em compreender os dificílimos dias que atravessamos neste século sorridente como uma hiena.

Roberto D’Avila é um entrevistador a não disputar o holofote com o entrevistado, praga do jornalismo moderno, sobretudo televisivo, aqui e nos Estados Unidos. Roberto, além de deixar o entrevistado à vontade, tem a sabedoria de fazer perguntas que permitam ao entrevistado sair do simples pingue-pongue muitas vezes limitado e estéril. Celso Amorim, por sua vez, é conhecedor exímio do cenário internacional a par de possuir vasta cultura humanística.

Celso me surpreendeu ao dizer que a crise atual a se desenrolar no Oriente Médio é certamente a mais perigosa desde a crise dos Mísseis entre os Estados Unidos e a então União Soviética.

Surpreendeu-me porque Amorim não é homem de superlativos, sempre sóbrio e preciso em suas análises. A ênfase com que se referia à crise entre Israel e o Hamas deu a ela uma qualificação e uma dimensão originais: a disparidade entre as lideranças mundiais de hoje e as dos anos 60. O que torna a crise mais assustadora hoje é a multiplicidade de agentes e países nela envolvidos e a inexistência de líderes mundiais capazes de rearrumar o cenário, no estilo, por exemplo, de Henry Kissinger, hábil em tirar boas lebres de sua cartola.

A partir daqui não quero desvirtuar o prazer de o leitor escutar o próprio Amorim explicar sua visão. Passo a mais pedestres considerações sobre o mesmo assunto, tema, aliás, que abordo consciente de seus riscos e da carga imensa de sua sensibilidade política. São na realidade esboços preliminares de uma reflexão que demanda espaço bem maior do que os limites deste artigo.

Quanto mais leio sobre política internacional nos dias que correm, mais me convenço de que estamos num desses momentos marcantes de nossa história neste planeta em que - com perdão do clichê surrado - o velho já morreu e o novo ainda não nasceu. Não nasceu, mas promete nos colocar diante de um desafio talvez inédito por suas dimensões políticas, religiosas, econômicas e filosóficas. Se eu fosse um cultor de bi-polaridades diria estarmos diante da perspectiva de um novo salto iluminista ou diante da tragédia de uma regressão às catacumbas.

Se a queda do muro de Berlim marcou para alguns “o fim da História” a crise de nossos dias representa o “o fim do fim da História”. Se o ocaso do comunismo teria dado início a um capitalismo globalizado e neoliberal, onde o Estado se retiraria do proscênio em nome da ascensão do mercado autorregulado, as crises que se sucedem desde os anos 90 até a Pandemia do Covid jogam por terra os pressupostos idealizados de um mundo sem fronteiras, de um comércio livre e de um desenvolvimento econômico como partição mais equânime de um bolo fictício.

Basta ver os movimentos regressivos que estamos a testemunhar, muito particularmente os autodenominados de nova-direita ou direita alternativa em que se aprofundam ódios e segregações religiosas, raciais e políticas.

A leitura de altos dignitários do governo Biden, apesar dos louváveis esforços daquele governo para se distanciar do esgoto trumpista, não deixa de escancarar uma regressão a um "modus-vivendi "em que se propõe, depois de tanta globalização, uma geopolítica de consistório, em que só os ungidos são bem-vindos.

Renasce uma tentativa de criar muros múltiplos a deixar o de Berlim como gradil de túmulos a segregar a tecnologia chinesa da ocidental, em franco, mas rasteiro renascimento da guerra-fria.

Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas merece menção honrosa a tentativa de os Estados Unidos da América fazer do G-7 uma espécie de plataforma petrolífera das relações internacionais, com influência decisiva sobre o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, naves-mães da geopolítica endereçada ao denominado Sul-Global. Sinceramente, já vimos este filme.

Ao contrário, penso que - como o Brasil demonstrou em sua capacidade de criar consensos no Conselho de Segurança das Nações Unidas - só uma aproximação realmente crítica e construtiva do sistema internacional nos levaria a um novo patamar de entendimento para os anos a seguir. O erro de visada do projeto de um G-7 iluminista é exatamente o de trazer no bojo as mesmas concepções dirigistas que marcaram a história das relações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, dirigismo anacrônico revelado pelo ocaso patético do poder de veto nas Nações Unidas, organização em busca de uma nova bússola para um mundo muito mais complexo do que o imediato pós-guerra.

A única saída defensável para o impasse atual seria a abertura ampla de um debate sobre o destino que afinal a racionalidade nos impõe se, efetivamente, quisermos tornar a humanidade capaz de sobreviver aos terríveis flagelos que se desenham diante de nós.

De qualquer forma, o primeiro passo, prévio a qualquer discussão, seria sem dúvida a criação de um Estado Palestino tal como acordado nos anos 40 do século passado. As guerras que se seguiram às resoluções das Nações Unidas apenas mostram a racionalidade delas como efetivas resoluções mandatórias do Direito Internacional, cuja desobediência pelas partes está na origem do progressivo esfacelamento do Direito Humanitário diante do qual nos encontramos.

A criação do Estado Palestino é exigência de todos os inocentes mortos nos genocídios de judeus, de palestinos, de armênios, de ruandeses e tantos outros, sabidos ou ignorados, que tornam a todos nós agentes e cúmplices de uma armadilha bíblica.

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EM TEMPO: Aos estudiosos interessados em aprofundar a visão dos Estados Unidos de Biden sobre geopolítica, recomendo a leitura do artigo do Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, publicado no “Foreign Affairs” de novembro/dezembro 2023.

2. Sobre racionalidade em relações internacionais, estou lendo de John J. Mearsheimer e Sebastian Rosato “How States Think”, Yale University Press, 2023.

3. "Milei, mas não te leio." (Provérbio canino)

 

Adhemar Bahadian é embaixador aposentado

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