ARTIGOS

A mão e a luva (de ferro)

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 22/10/2023 às 08:01

Ramiro Saraiva Guerreiro, Embaixador e ex-Chanceler, costumava dizer que o Brasil não precisava do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas o Conselho de Segurança precisava do Brasil. Na época, os críticos de Guerreiro atribuíam esta postura a uma excessiva cautela, pois desde sempre o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança dependia de múltiplos fatores que até hoje se manifestam e, talvez, se tenham agudizado.

Quando se olha o trabalho desenvolvido pelo Brasil nas últimas semanas, só os radicais de sempre poderiam persistir na convicção de que a frase de Guerreiro seria apenas um meio elegante de silenciar os defensores de uma ampliação do Conselho de Segurança, dentre os quais muitos de seus assessores diretos, então jovens diplomatas de minha geração.

A resolução apresentada pelo Brasil, na qualidade de presidente do Conselho de Segurança, será objeto de estudos e análises por todas as chancelarias profissionais, pois ela desnudou todo o tecido inextrincável do conflito ente a luva da Diplomacia e o punho do realismo do Poder.

Desde Mauro Vieira, Celso Amorim, Maria Laura, nossos diplomatas em Brasília, em Israel, na faixa de Gaza, na Missão na ONU - a começar pela sóbria e inteligente atuação de Sérgio Danese - o Brasil mostrou o alto grau de profissionalização que imprimimos ao mandato que nos foi entregue pela comunidade internacional numa das horas mais incendiárias da humanidade.

A dedicação de Lula a orientar os tempos e passos de nossa Diplomacia, seu incansável esforço de falar com ouvidos moucos e insensíveis ao drama humanitário que se desenrola diante de nós todos não terá passado despercebido à consciência do mundo e nos faz pensar sobre a fragilidade comprometida do Direito Internacional, a anomia da ONU e sobre os riscos que todos corremos quando a sinfonia macabra da guerra ocupa o proscênio com o coro hobbesiano de lobos ensandecidos.

Não pretendo aqui juntar-me às análises de um lado e de outro sobre as razões de tão infeliz momento em nossa história dita civilizada. Sei apenas que ressurgem, com o mesmo bafo agônico de vampiros, as teses a demolir o Direito Internacional, tornando-o uma luva de ferro a envolver o punho da guerra.
Apenas, se comprova a visão de que uma reforma do Conselho de Segurança não começa nele e talvez sequer com ele. Hoje, há uma escandalosa divergência entre o chamado direito internacional e o que se chamava Direito da Gentes ou dos povos civilizados. Ao longo dos anos, o Direito Internacional, com força mandatória, se vincula ao direito dos mais fortes e isso se revela não só no Conselho de Segurança, mas também em outros foros internacionais.

Constrange a deturpação do sistema econômico internacional, sobretudo depois da criação da OMC e nela o Acordo Trips que transformou as regras de Propriedade Intelectual dos Fármacos num oligopólio de grandes empresas transnacionais em detrimento do acesso a medicamentos e a vacinas, como vimos na Pandemia do Covid. Um escândalo em nome de um escandaloso Direito Internacional feito sob medida para enriquecer abusivamente um poderoso grupo de pressão, com lobistas suficientemente bem pagos no Congresso americano. Lembra a Diplomacia do Dólar. Ou das canhoneiras. Em defesa do livre-comércio.

De todo este lamentável episódio, resta uma tênue esperança: a de que a não menção do nome do primeiro-ministro de Israel no discurso de Biden ao povo americano possa ser entendido como apoio à comunidade judaica interessada no fim da guerra e na criação de um Estado Palestino, como forma de real pacificação do problema a se arrastar desde o início dos anos quarenta do século passado.
Vou dormir neste sábado, porém, com mais uma preocupação, esta infelizmente bem perto de nós, na Argentina, onde espero a praga deste fenômeno chamado populismo autoritário não nos traga ainda mais problemas.

Recomendo, como canção de ninar, na voz original de seu autor, “O Mundo é um Moinho” de Cartola.

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

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