ARTIGOS

Olho por olho: a cegueira universal

Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER
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Publicado em 17/10/2023 às 12:43

Alterado em 17/10/2023 às 12:43

Os corações de todos que ainda são humanos pulsam e choram por causa do que acontece em uma franja de terra no Oriente Médio. Um ataque a pessoas pacíficas que levavam sua rotina em casa, ou a jovens alegres que dançavam em uma rave se transformou em horror. As vítimas continuam sendo contadas e os reféns são buscados e esperados com angústia agônica quanto mais passam os dias e o silencio é o único som ao redor.

A ofensiva não ficou sem resposta. E a espiral do conflito foi desencadeada e nada parece detê-la. Pelo contrário só faz crescer. Toma proporções inter-regionais, internacionais. O conflito é discutido, por chefes de estado, estudantes e professores, autoridades civis e religiosas. Quem sobrevive no local sofre: falta água, comida, segurança...e sobretudo paz. O que é mais desejado é o que parece mais distante.

A dor é o único sentimento que predomina e impregna o ar. Pode ser apalpada nos gritos inconsoláveis das mães que enterram seus filhos, das crianças cujos pais desaparecem e se veem sozinhas, nos anciãos perplexos que ainda não entendem o que está acontecendo. Apenas padecem o horror da guerra que não querem nem desejam e que lhes é imposta dia após dia.

Em meados do século XX uma jovem filósofa francesa chamada Simone Weil quis sentir em seu corpo os horrores da guerra e alistou-se na coluna Durruti, na guerra civil espanhola. Sua experiência foi tão traumática que por ela jamais foi esquecida. Depois foi obrigada a fugir de Paris ocupada pelos nazistas para salvar a vida dos pais, judeus que certamente seriam deportados ao campo de extermínio se ali permanecessem.

Seu maior desejo era voltar e lutar ao lado dos aliados contra o nazismo. Não conseguiu entrar de novo na França e morreu na Inglaterra. Porém deixou inspiradas e profundas páginas sobre a guerra. Afirmou e escreveu que jamais uma guerra pode ser considerada justa. Pois, em toda guerra, por mais justa que seja a causa do vencedor, por mais justa que seja a causa do vencido, o mal que faz seja a vitória, seja a derrota, não é menos inevitável. Esperar escapar disso é proibido.

Em meio à violência conflagrada e deflagrada, só existem perdas e ninguém ganha. A verdade está obscurecida pela dor e pelo sangue e ninguém pode enxergar adequadamente, preocupado que está em sobreviver a qualquer preço, ainda que este preço sejam vidas alheias.

O que o mundo vive nos últimos dias é a profecia dita pelo Mahatma Gandhi: “Olho por olho deixa o mundo inteiro cego.” Cego daquela cegueira que não reconhece o que tem pela frente. Cego porque não percebe a destruição que gera em sua sede de violência e nem se preocupa como vão viver as gerações que nascerão em meio aos escombros e às cinzas. Cego porque só lhe importa o triunfo do agora e pensando enxergar, na verdade está submerso na cegueira da razão e do coração.

Neste momento as bombas continuam a cair na franja de terra tão golpeada, dilacerada entre ataques, revides, novos ataques e armas. E os corações daqueles que empunham armas para atacar ou para se defender sob ordens de outros que não as empunham desejam paz. E os sobreviventes que contemplam o que restou dos seres amados desejam também paz.

Que venha a paz, não a que é ausência de guerra, mas sim fruto do desejo de vida. A que limpa e abre os olhos, curando a cegueira. A que acredita no amanhã quando vão poder crescer as crianças e os anciãos chegarão ao fim dos seus dias rodeados do carinho de seus familiares. A que se alimenta de trabalho e afeto, pão e beleza. A que aceita recuar para que todos cresçam. A que ultrapassa as simetrias para que o mundo inteiro não padeça da cegueira mortal onde a luz não penetra. A que reconhece que a guerra jamais é justa, pois a justiça anda de mãos dadas com a paz e não floresce em meio à violência e à agressão.

Que venha a paz, sem vencedores nem vencidos. A paz onde a vitória é a da vida de muitos e de todos.

 

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados” (PUC-Rio & Vozes), entre outros livros.

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