ARTIGOS

Inconstitucionalissimamente

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 08/10/2023 às 06:45

Alterado em 08/10/2023 às 08:45

Inconstitucionalissimamente era a palavra mais longa da língua portuguesa, nos tempos em que minha geração andava de calças curtas. Era um desafio pronunciá-la sem tropeçar nas consoantes ou nas vogais. O terror dos tatibitates. Havia uma variante, pouco usada nos debates, mas infelizmente muito mais usual nos saraus políticos: anticonstitucionalissimamente.

Levou algum tempo, talvez tanto quanto ou um pouco menos, para que a compreensão do sentido funesto da palavra nos incomodasse como a acne que nos surgia no rosto ou os desequilibrados falsetes de nossa voz, às vezes roucos ou desafinados. Nossa puberdade, além dos pertubadores, mas sensacionais encantos trazidos por músculos até então insuspeitos de promoverem tamanha rebeldia, foi sucedida por uma adolescência amadurecida-sufocada por uma inconstitucionalidade aqui, uma anticonstitucionalidade frequente ali, mal entrávamos nos inesquecíveis anos 50-60 e seus apelos de “Help, Help, I need somebody help”. Mas, tínhamos também o piano de Bené Nunes e a visita de Nat King Cole, ambos a tocar e a cantar a balada “Fascination”. Tivemos JK.

Nada mais Constitucional do que os anos JK. Depois de tanta tristeza, tanta ameaça da chegada do Apocalipse, eis que nos surge o Presidente pé-de-valsa a nos incrustar o sentimento grandioso de ser brasileiro, de plantar no planalto central uma cidade até hoje futurista e admirável onde até o concreto bruto se curva diante da dócil arquitetura bailarina.

Breve interlúdio temporal antes da reviravolta inconstitucional e anticonstitucional de duas décadas de um milagre anunciado e nunca parido, apenas redimido pela Constituinte exigida pelo povo, convocada por Sarney e levada a bom termo pela pertinácia sobre-humana de um gigante chamado Ulisses.
E neste ano, 35 depois de sua promulgação, a Constituição cidadã assume pacífica o seu papel da Geni, ao absorver soberana as pedradas dos que a acham impossível de ser implementada, sem nela reconhecer, a cada ano que passa, seu caráter imutável de estrela-rainha a nos apontar o caminho possível da reconstrução .

Nela se encontram exaustivamente elencados nossos direitos fundamentais, escritos quase como mandamentos em nome de uma sociedade plural, mas ainda desigual, injusta e segregacionista. As defesas que nela se fazem de educação para todos, saúde para todos, direitos idênticos para homens e mulheres fazem dela talvez o mais moderno instrumento de uma sociedade em harmonia com o Direito das Gentes e com os imperativos de preservação do planeta.

Há os que a ridicularizam por advogar metas ambiciosas que exigiriam imensas inversões públicas. E há neste argumento mais malícia do que prudência porque a Constituição é a primeira a saber que os ditames sociais e econômicos nela inscritos são programas de calendário aberto e, portanto, pressupõem metas programáticas ao longo de décadas e não, como insistem seus críticos, metas sonhadoras e irrealizáveis.

Talvez, hoje, a leitura explicada da Constituição brasileira devesse ser a primeira preocupação da Ordem dos Advogados do Brasil e entidades assemelhadas. A promoção de cursos gratuitos e avulsos sobre a Constituição brasileira poderia reduzir em muito os preconceitos sobre o texto constitucional, em especial os que a ela atribuem um sentido esquerdista ou até mesmo socialista.

A Constituição brasileira de 1988 é claramente capitalista e defensora da propriedade privada. O que ela faz é equilibrar o direito à propriedade com a justiça social, o que no Brasil, quando comparado com os países membros da OCDE, é visivelmente necessário e imperativo. O que ela nunca postulou, defendeu ou tolerou é a leitura estrábica que atribui a um não-poder, o poder moderador e a qualquer dos três poderes, um direito de insurgência, atentatório a suas cláusulas pétreas.

Aos que eventualmente se interessem pelo estudo e interpretação da Constituição de 1988, há excelentes livros, inclusive os escritos pelo atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso, e pelos seus colegas de corte, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.

Eu, sempre me valho do importantíssimo “Comentário Contextual à Constituição“, de José Afonso da Silva, cuja oitava edição me foi presenteada com dedicatória pelo autor, um de nossos mais reconhecidos constitucionalistas. E que estava presente, apesar de seus 90 e mais anos, no histórico lançamento do manifesto em favor da Democracia, na Faculdade de Direito de São Paulo, num dos momentos regressivos do governo recém-findo pela vontade popular e os ditames constitucionais.

A Constituição de 1988 é tão desconhecida como a letra de nosso Hino Nacional. Nos ensinou Maria Bethania.

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EM TEMPO: Merece ser visto o documentário lançado nesta sexta-feira, no Festival de Cinema do Rio, “Utopia Tropical”, de Jõao Amorim. Interessantíssimo diálogo entre Noam Chomski e Celso Amorim. Requisito básico para os estudiosos de Relações Internacionais. Aula clara, corajosa e profundamente esclarecedora. Jõao Amorim tem, como cineasta, o mesmo olhar inteligente do pai nas relações internacionais. A quem homenageia lindamente.

2. Está nas livrarias “Que Pasa Argentina?”, de Janaína Figueiredo. Vale a pena ler. Janaína é uma brasileira que viveu na Argentina desde criança. Tornou-se correspondente de jornais, tanto brasileiros quanto internacionais. Seu olhar é admirável. O capítulo sobre a psicanálise na Argentina é uma leitura muito original.

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