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Falta de médicos peritos no Marajó dificulta apuração de crimes sexuais infantis

Uma ação civil pública foi ajuizada para que o governo do Pará disponibilize o serviço de perícia na região

Por JORNAL DO BRASIL com Alma Preta Jornalismo
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Publicado em 25/05/2024 às 11:07

Alterado em 25/05/2024 às 11:07

Belezas naturais contrastam com uma realidade de profunda vulnerabilidade social no Marajó Foto: Pedro Guerreiro/Agência Pará

Fernando Assunção - Os 17 municípios que formam o arquipélago do Marajó, no Pará, não contam com médicos peritos para atender a população de quase 600 mil habitantes. Segundo especialistas, a realidade, no contexto de vulnerabilidade social que vive a população local, dificulta a devida apuração de crimes como estupros, assédios sexuais e violência doméstica, inclusive contra crianças e adolescentes.

Uma ação civil pública (ACP) foi ajuizada na Justiça do Pará para que o governo do estado disponibilize o serviço de perícia médico-legal na região. A ação tramita na 5ª Vara da Fazenda Pública de Belém. O Ministério Público do Estado do Pará também acompanha o caso, por meio da 1ª Promotoria de Justiça de Ações Constitucionais e Fazenda Pública.

Sem perícia no Marajó, aponta o documento, as vítimas de violência sexual precisam realizar os procedimentos na capital, Belém, que fica a mais de 300 quilômetros de distância de algumas cidades marajoaras. Diante das dificuldades de deslocamento, em muitos casos, as vítimas acabam desistindo de levar a denúncia adiante e responsabilizar os agressores.

De acordo com a ação, a inclusão dos médicos legistas no sistema de saúde pública do Marajó se trata de uma política pública concreta voltada à proteção das crianças e dos adolescentes. O documento ainda requer do estado a crianção de um mecanismo de atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

A ação foi ajuizada pelo escritório Hugo Mercês Advocacia, representante da Cáritas Brasileira Regional Norte 2, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para o advogado Hugo Mercês, a ausência de especialistas prejudica a apuração pericial de crimes sexuais na região do Marajó.

“O nosso objetivo é assegurar a apuração, de maneira adequada, dos crimes que envolvem violência sexual contra crianças e adolescentes, uma vez que falta do serviço de perícia médico-legal nas localidades onde os crimes ocorrem pode inviabilizar a colheita da prova do crime”, diz o advogado.

Levantamento do escritório aponta que as regiões paraenses da Alça Viária, Araguaia e Tapajós também não dispõem de médicos peritos. Segundo Mercês, desde 2019 o governo estadual não realiza concurso público para sanar a ausência do serviço no estado.

Violações à legislação de defesa dos direitos da criança e do adolescente
A ação civil pública foi ajuizada pela Cáritas Brasileira Regional Norte 2, que, por meio do Projeto Içá, atua na proteção, defesa e efetivação de direitos de crianças e adolescentes na Amazônia, e no enfrentamento ao tráfico, abuso e exploração sexual infantil.

O documento aponta que diversas legislações nacionais e até internacionais são violadas em razão da falta de uma estrutura estatal adequada de proteção ao público menor de 18 anos de idade vítima de violência sexual, situação que também dificulta o andamento dos processos já abertos na justiça do Pará.

“No âmbito das legislações internacionais, temos uma expressa violação à Convenção Internacional dos Direitos da Criança. A Resolução 20/2005 do Conselho Econômico e Social da ONU [Organização das Nações Unidas], que exige uma melhor qualidade de atendimento às vítimas infantis, também está sendo violada. Temos ainda a violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à própria Constituição Federal”, reitera o advogado.

A secretária-executiva da Cáritas Brasileira Regional Norte 2, Ivanilde Silva, liderança do Quilombo do Abacatal, explica que as violações foram levantadas por meio de denúncias acompanhadas pelo projeto, ao longo de visitas junto às famílias e às instituições.

“Dentre as necessidades da rede de proteção, além de médicos legistas, está a necessidade de ampliação de profissionais na área da assistência social e na saúde para atender as comunidades que não estão acessando esses serviços, assim como a notificação dos casos de violência sexual e consultas regulares para as crianças”, diz Ivanilde.

“Entendemos como importante e necessário entrar com a ação civil pública em questão, em uma perspectiva de incidir na melhoria de estruturas e serviços essenciais para a garantia de direitos de crianças e adolescentes”, complementa a representante da Cáritas Brasileira Regional Norte 2.

Denúncias de exploração sexual infantil e fake news
O Marajó é formado por cerca de 2,5 mil ilhas e ilhotas, com uma população estimada em 593.822 pessoas, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Maior arquipélago flúvio-marítimo do planeta, o Marajó é cercado por rios e banhado pelo oceano Atlântico, com natureza exuberante e rica cultura local.

Mas as belezas naturais contrastam com uma realidade de profunda vulnerabilidade social. Fica no Marajó a cidade com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil: Melgaço. Com uma pontuação de 0,418, em uma escala que vai de 0 a 1, a cidade se encontra na faixa de áreas com desenvolvimento humano muito baixo. Além disso, 14 dos 17 municípios marajoaras apresentam IDH baixo ou muito baixo.

Em fevereiro deste ano, o Marajó foi destaque na mídia por denúncias de exploração sexual infantil. Ao participar de um reality show musical do YouTube, a cantora evangélica Aymée entoou uma música com citação ao suposto desaparecimento de crianças na ilha e ressaltou que “criancinhas de 6 a 7 anos saem em uma canoa e se prostituem no barco por R$ 5 [para turistas]”.

A apresentação teve comoção nacional e artistas e influenciadores digitais, como Juliette, Ludmilla, Luísa Sonza e Rafa Kalimann, se pronunciaram cobrando ação das autoridades. Mas essa não é a primeira vez que graves denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes no Marajó vieram à tona e ganharam ampla repercussão na internet.

Em 2022, durante um culto em Goiânia (GO), a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a dizer que crianças do Marajó tinham dentes arrancados para não morderem durante a prática de sexo oral e eram traficadas para exploração sexual. Elas ainda comeriam comida pastosa para o intestino ficar livre para o sexo anal.

Após a repercussão da fala, o Ministério Público Federal (MPF) pediu informações detalhadas para a atual senadora, que afirmou que as denúncias eram embasadas em relatos que ouvira “nas ruas” e que não conseguiria apresentar provas. De acordo com o MPF, a atitude teria propagado fake news e causado danos sociais e morais coletivos à população do arquipélago.

Valéria Carneiro, liderança quilombola do município de Salvaterra, diz que é preciso reconhecer a problemática existente na região sem sensacionalismo e cobrar das autoridades ações concretas de combate às mazelas. Ela cita que o cenário de exploração sexual infantil é uma realidade em todo o Brasil, o segundo país no ranking, segundo dados do Instituto Liberta.

“Não podemos invisibilizar a exploração sexual infantil no Marajó; agora, é necessário reconhecer que isso é uma problemática a nível de Brasil e de mundo. No caso do Marajó, percebemos que a falta de políticas públicas, de interesse político e do reconhecimento das necessidades do nosso povo e das nossas comunidades ocasiona em várias outras mazelas”, dispara.

Políticas públicas para enfrentar crimes sexuais infantis no Marajó
A liderança do Quilombo Pau Furado, Valéria Carneiro, atua em diversas frentes das comunidades marajoaras, como a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) e o Fórum Permanente da Sociedade Civil do Marajó, e preside o Fundo Quilombola Mizizi Dudu.

Ela afirma que as reivindicações por mais políticas públicas para o Marajó, inclusive a necessidade de médicos peritos, é parte desses espaços. “É necessário discutir políticas públicas voltadas ao atendimento a mazelas dessa população, como estratégia de enfrentamento aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes”.

“Nós não temos serviço especializado de perícia no município, assim como é insuficiente os mecanismos de denúncias. Os 17 municípios do Marajó têm somente uma delegacia da mulher, em Soure, e nem sempre a delegada está presente. Já houve caso da gente procurar a delegacia e ela estar fechada. A falta desse serviço especializado intimida as vítimas e faz com que elas não procurem denunciar”, completa Carneiro.

Cerca de 15 mil marajoaras vivem em comunidades quilombolas, de acordo com estimativas da Malungu. Segundo o advogado Hugo Mercês, são eles os mais afetados pela falta de uma rede de proteção adequada a crianças e adolescentes.

“O fator geográfico das comunidades quilombolas e ribeirinhas apresenta a necessidade de uma política pública mais efetiva no Marajó, pois o acesso aos serviços na área da assistência social e saúde, na atenção primária, não chegam a esses territórios, tornando invisível a atuação do poder público. Assim, podem ser considerados como os mais afetados”, avalia.

Programa ‘Cidadania Marajó’ anuncia ações 
Em maio de 2023, o governo federal lançou o programa “Cidadania Marajó”, que prevê uma série de políticas públicas para a população marajoara, integrando serviços de cidadania, saúde, educação e economia com foco em políticas de direitos humanos. A pasta mantém a ouvidoria Disque Direitos Humanos (Disque 100), canal de denúncia de violação dos direitos humanos.

No sábado (18), Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, novas ações contra a exploração sexual infantil no arquipélago do Marajó foram anunciadas pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), e Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege). O plano de atuação conjunta prevê diversas ações em defesa da garantia de direitos infantojuvenis.

Rita Oliveira, ministra substituta do ministério liderado por Silvio Almeida, conduziu as tratativas entre as instituições para alinhamento e estruturação de um plano focado no enfrentamento da violência e exploração sexual infantil. A pasta tem dialogado com o sistema de justiça ao longo dos últimos meses para construir a pactuação.

“O objetivo é o aprimoramento do fluxo de atendimento de crianças e adolescentes pelo sistema de justiça e pelo sistema de garantia de direitos para a população do Marajó”, explicou Rita Oliveira. Segundo ela, o plano prevê o aperfeiçoamento da política de saúde nacional para ofertar atendimento psicológico especializado e eficiente para crianças e adolescentes vítimas de violência, sobretudo sexual.

A estruturação adequada de serviços e equipamentos necessários à proteção de crianças e adolescentes, a formação dos profissionais envolvidos, a fim de garantir uma proposta eficaz, coordenada e integrada diante das situações, também foram tratadas pelo plano.

A Alma Preta solicitou um posicionamento do Governo do Estado do Pará e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania acerca da falta de médicos peritos no Marajó. Até a publicação desta reportagem não houve resposta. O espaço segue aberto. Em nota, a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Pará disse que o processo estará concluso para decisão, “após fase de procedimento interno”.