Material didático exclusivo do governo Tarcísio 'ensina' que Dom Pedro II assinou a Lei Áurea
Conteúdo integra o modelo 100% digital da Secretaria da Educação paulista e circula em mais de cinco mil escolas da rede estadual de ensino desde abril
Em uma das decisões mais contestáveis tomadas nos primeiros oito meses de mandato, o governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) tentou recusar os livros didáticos oferecidos gratuitamente pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), para implementar seu próprio método de ensino.
Nessa defesa ideológica, inspirada nos ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à metodologia freiriana (de Paulo Freire), o Governo de São Paulo optou por lançar seu material didático 100% digital, que foi aplicado em salas de aula de 5 mil escolas estaduais. Após repercussão negativa, o Executivo recuou e foi obrigado a conciliar os novos materiais com aqueles que existem há mais de 80 anos.
Embora não mais exclusivo, o conteúdo, considerado vanguardista pelo governador, traz erros até certo ponto chocantes, sobretudo nas disciplinas História e Biologia. Em um dos tópicos, disponíveis para alunos do 9º ano, um erro crasso diz respeito à geografia paulistana. O slide diz o seguinte:
"A proibição do uso de biquínis foi adotada por Jânio Quadros em 1961, quando ele era prefeito de São Paulo. Ele emitiu um decreto vetando o uso de biquínis nas praias da cidade. A justificativa de Quadros era que o traje de banho seria uma afronta à moral e aos bons costumes. Esse impedimento também causou grande repercussão na época e gerou protestos de mulheres".
Trata-se de uma desinformação dupla. Além da capital não ficar no litoral, Jânio foi prefeito entre 1953 e 1955. O uso de biquínis foi, de fato, proibido por Jânio Quadros, mas nas praias brasileiras, quando ele era presidente da República.
Já em outra parte do material, para alunos do 8º ano do ensino fundamental, outro erro para lá de grotesco. Diz o trecho: “Em 1888, Dom Pedro II assinou a Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil”.
Todos que têm o mínimo de conhecimento sobre a história nacional sabem que a Lei Áurea foi, na verdade, assinada pela Princesa Isabel, filha de Dom Pedro II.
Além dos erros nos conteúdos de história, as aulas de ciência também trazem erros infantis, para dizer o mínimo. Alunos do 7º ano, por exemplo, agora aprendem que a água pode causar Parkinson e Alzheimer.
"Além da ingestão de metais pesados, como mercúrio, agrotóxicos, remédios e produtos químicos em geral, que podem causar doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, perda de concentração e deficiência de memória, além de problemas cognitivos, depressão e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH)".
É outra desinformação, pois essas doenças não são transmissíveis. Elas não são causadas por vírus, bactérias, parasitas ou outros organismos vivos, ou seja, não são infectocontagiosas.
No caso do Alzheimer, uma possível causa para a doença ainda não foi identificada, mas a hereditariedade é considerada um fator de risco. O mesmo fator é relacionado ao Parkinson. Neste segundo caso, há pesquisas que indicam que a exposição a toxinas, como agrotóxicos, podem ter causado o desenvolvimento da doença em algumas comunidades.
Professores afastados
Com a divulgação dos erros pela imprensa, a Secretaria informou, já nesta quinta-feira (31), que "afastou os servidores responsáveis pelos graves erros didáticos no material digital". A Seduc, comandada por Renato Feder, não disse quantos docentes foram penalizados pelos erros.
Além do afastamento dos envolvidos, por meio de nota, a pasta também diz que o conteúdo é editável e os erros apontados já foram corrigidos. ”A coordenadoria pedagógica da instituição vai reforçar a equipe de revisão para que haja aprimoramentos constantes nos recursos didáticos, sempre em total harmonia com o Currículo Paulista”, completou a Secretaria.
Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), disse que a entidade vai denunciar o caso ao Ministério Público de São Paulo por entender que os docentes estão sendo penalizados por uma atribuição que não é deles.
"O secretário decidiu que iria produzir esse material e usá-lo no lugar de livros de verdade. Ele, o secretário, é quem é o responsável por esses erros. Ele decidiu fazer o material de forma apressada e com profissionais que não têm essa experiência nem atribuição", respondeu.
Deseducação
O afastamento é o mesmo que enxugar gelo. O conteúdo faz parte do material digital que uma equipe organizada pela Seduc produziu. Três milhões de alunos da rede estadual de ensino utilizam o material desde abril. Segundo a Seduc, o material foi feito por uma equipe de cem educadores, alguns professores da rede.
A pasta nunca informou como foi feita a seleção desses profissionais que iriam produzir o material didático. Tampouco disse se eles receberam algum tipo de treinamento.
Desde que esse conteúdo passou a ser distribuído, professores e especialistas têm constatado uma série de erros nas aulas. Ainda assim, a secretaria insiste que o material é de qualidade e deve ser usado.
Além dos problemas nas disciplinas supracitadas, há uma série de erros gramaticais, conceituais e metodológicos em todo o material produzido pela secretaria de Renato Feder. Segundo análise feita por pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), caso o material fosse submetido ao processo de avaliação de qualidade usado pelo MEC na escolha dos livros didáticos, ele seria reprovado.
Os especialistas, autores de livros didáticos e editoras da área, já haviam apontado que o material produzido por Feder não segue os padrões mínimos de qualidade.
Rejeição ao MEC
Mas Feder não só apostou na produção de um material didático próprio e digital, como também abriu mão, inicialmente, de receber os livros didáticos da União.
Em 31 de julho, a secretaria declarou que não participaria do PNLD. Portanto, abdicou dos livros didáticos selecionados e comprados pelo Ministério da Educação (MEC), órgão federal. Com a repercussão negativa, o governo do Estado voltou atrás da decisão em 16 de agosto. Em ofício, o secretário solicitou ao MEC a readesão ao PNLD.
No entanto, o material digital da secretaria continua sendo enviado às escolas. Os professores têm recebido a orientação de que são obrigados a usá-lo em sala de aula, transmitindo o conteúdo por uma televisão.
Feder tem planos ainda de fornecer o material digital, produzido por sua equipe, para escolas municipais do estado. Ele defende que assim haverá uma padronização do ensino em São Paulo.