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O intruso

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O consagrado escritor norte-americano WILLIAM FAULKNER em seu romance O INTRUSO, ambientado nos EUA, na década de 1940, descreve a acusação injusta que sofre um negro - Lucas Beauchamp -  de ter praticado um crime de homicídio.

A prisão do homem negro não é suficiente para conter a fúria dos racistas, que querem linchá-lo. Não fosse a solidariedade de um adolescente branco, de um outro adolescente negro e de uma senhora branca,  de mais de 70 anos, o verdadeiro autor do crime não seria descoberto. A sociedade local não estava interessada na verdade, mas em extravasar a vingança que a dominava contra um homem negro.

Uma ilusão imaginar que o racismo nos dias de hoje possa ser contido pelas normas jurídicas. Estas podem até tipificar determinadas condutas individuais, mas deixam de ser aplicadas, ou são convenientemente esquecidas, na medida em que  o sentimento do ódio assume dimensão coletiva.

Exemplo do que se diz são os últimos acontecimentos que tomaram conta da vida do ex-presidente da República, Lula da Silva. O modo como parte da opinião pública reagiu a eles não deixa dúvida sobre o fenômeno da discriminação que se abateu na sociedade brasileira.

É bom não esquecer que quando a ex-primeira dama do país esteve internada, senhoras bem vestidas se deslocaram até a portaria do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, não para prestar solidariedade, nem para rezar pelo restabelecimento da enferma. Para ali se dirigiram com o intuito de gritar, como fizeram, que Dona Marisa fosse morrer em outro hospital, destinado aos pobres e aos operários; o preconceito dirigido a uma ex-babá não se restringiu somente a tais senhoras: alguns médicos, quanta ironia, não tiveram um mínimo de vergonha para estampar em redes sociais o desejo de que a doente morresse logo. O mesmo se diga em relação a um procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. É a nossa sociedade culta; são os nossos homens e mulheres de bem.

Com o ex-presidente da República, que veio da pobreza e se afirmou na vida como operário, se pretende punição exemplar na operação Lava-Jato e que ele aprenda de uma vez por todas a lição de que em nosso país um operário não pode chegar aonde ele chegou, e para atender a esse sentimento de vingança vale distorcer a lei e as demais normas de direito positivo, e se  puder arranque-se do leito de um hospital sua companheira e a jogue na vala comum. Não se luta e nem se reivindica, como é justo exigir nas circunstâncias, para que todos tenham acesso à saúde, não importando a classe social a que pertençam.  A injustiça e a desigualdade de tratamento médico, segundo as ilustres senhoras, devem continuar a existir, e os intrusos deveriam saber o seu lugar, não se acomodando em hospitais que a eles não são destinados.  

Relativamente aos citados na colaboração premiada, bem, quanto a estes, a tolerância desses mesmos setores da sociedade é tamanha que chegam,  indisfarçadamente, a se tornarem cúmplices, por omissão, dos crimes que aqueles teriam  praticados, e lhes é permitido, sem qualquer censura,  indicar ministros para  a  Suprema Corte; podem transformar-se em ministros, que serão julgados, se é que serão,  por juízes por eles mesmos escolhidos para tal fim; podem ter conta ilícita no exterior; podem receber propina de obras faraônicas, que os grandes jornais nada noticiam a respeito. Não há protesto nem indignação.

 Afinal, estamos no Brasil e como Lucas Beauchamp, romanceado por Faulkner nos EUA dos anos 40, Lula da Silva, em 2016, não passa de um intruso a ser devolvido a seu devido lugar.

* Professor da PUC-Rio e Procurador de Justiça do MP do Rio de Janeiro.