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Quem tem medo de Lima Barreto?

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Eu tenho uma teoria (nem um pouco revolucionária, mas vá lá): um leitor bem informado, aprecia muito mais a leitura que empreende.

Se considerarmos, especificamente, os clássicos da nossa literatura, é notório que muito pouco sabemos sobre obras e autores.

A minha função aqui nesse espaço será, tanto quanto possível, compartilhar um pequeno (mas importante) “banco de dados” dos mais renomados autores e obras da nossa literatura, de forma leve e informativa, com a agilidade e a brevidade que a internet exige, tanto do autor, quanto do leitor contemporâneo.

Informações (algumas pouco conhecidas do grande público) que por estarem esparsas numa vasta bibliografia são de acesso difícil.

>> Lima Barreto será o escritor homenageado na Flip 2017

Hoje, meu artigo tratará de Lima Barreto.

Os traços deste retrato biográfico — inspirado nos famosos “Arquivos implacáveis” do jornalista João Condé (1912–1996), que marcaram época no jornalismo literário brasileiro — são honestos e fidedignos (na medida do possível), tendo sido extraídos de confissões do próprio escritor em artigos e livros e de depoimentos de amigos próximos, como Gamaliel Mendonça (1885–1948), Austregésilo de Athayde (1898–1993) e o próprio Condé, entre outros.

Quem foi Lima Barreto?

·      Seu nome completo era Afonso Henriques de Lima Barreto. Nasceu nas Laranjeiras, na rua Ipiranga, em 13 de maio de 1881.

·      Era filho de João Henriques de Lima Barreto (tipógrafo) e Amália Augusta (professora); afilhado de Afonso Celso de Assis Figueiredo (1836–1912), o Visconde de Ouro Preto, e de N. S. da Glória.

·      Perdeu a mãe aos 6 anos. Seu padrinho, o Visconde, de quem Lima Barreto herdou o primeiro nome, lhe garantiu uma educação escolar de qualidade. Por conta dos problemas psiquiátricos do pai, Lima abandonaria a Escola Politécnica, onde cursou até o terceiro ano.

·      Nunca usou óculos. Gostava de andar a pé. Usava chapéu de palha. Não gostava de cinema, principalmente do cinema americano.

·      Mestiço declarado, tinha o rosto redondo, mas de traços suáveis. Os lábios sobretudo eram finos e “irônicos”. A risada era uma risadinha seca, gorgolejante, quase sem rumor.

·      Levantava-se cedo, antes das 8 da manhã, indo para uma venda próxima a sua casa, a fim de ler jornais. Bebericava pelos botequins da cidade. Fumava e bebia muito.

·      Escrevia à mão e implicava com “tecnologias”. O telefone, por exemplo, ele considerava uma inutilidade.

·      Seu prato predileto era “tutu de feijão com um bom molho de tomates, cebola e vinagre, seguido de uma carne-seca”. Gostava de sapotis.

·      Sabia nadar muito bem.

·      Respondia religiosamente todas as cartas que recebia, guardando as minutas das respostas. Nunca deixou de agradecer livros enviados por escritores novos.

·      Não gostava do bairro de Botafogo e da zona sul em geral.

·      Detestava futebol, principalmente porque os grandes clubes cariocas tinham preconceito de cor. Chegou até a criar a “Liga brasileira contra o futebol”, em 1918. Mas, há quem jure que era vascaíno.

·      Quando bebia fazia propaganda anarquista, mas de repente dava-lhe na veneta que era tenente, e saia prendendo quem encontrasse pela frente.

·      “Sem ser monarquista não ama a República”. Era funcionário aposentado do Ministério da Guerra.

·      Entre os seus livros publicados, preferia o “Gonzaga de Sá”.

·      Era supersticioso. Nunca deixava chinelos ou sapatos virados de cabeça para baixo porque isso, todos sabemos, dá um baita azar.

·      Em sua antiga residência da rua Major Mascarenhas, 26, no bairro de Todos os Santos, o romancista tinha uma biblioteca, pequena, mas muito eclética.

·      Suas leituras prediletas incluíam Guyau (o “Nietzsche francês”), Dickens, Brunetière, Kropotkin, Balzac, Dostoiévski (seu predileto), Tolstoi e Maupassant.

·      “Crime e castigo”, de Dostoiévski, era o seu livro de cabeceira.

·      Não gostava que o comparassem a Machado de Assis, muito menos que o considerassem seu discípulo, continuador ou seguidor. Sempre achou Machado “seco de alma”, “sem entusiasmo”, medroso e antipático.

·      Foi contra o Futurismo e era melancólico. “Nunca tive amor, mas sempre tive amigos nos transes mais dolorosos da minha vida”.

·      Detestava o escritor Coelho Neto, a quem considerava “o sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual”.

·      Embora contra a Academia Brasileira de Letras, candidatou-se 3 vezes. Na primeira, em 1919, teve 2 votos, nas outras, desistiu antes da eleição.

·      Lima era antimilitarista e não se considerava ateu de todo, embora não fosse católico. Dizia “Eu sou inteiramente tolerante, nunca me fiz anticlerical”. Alguns dizem até que ele era espírita.

·      Dizia que não se suicidava, porque a mãe (já morta), não deixava.

·      Não era apreciador de macumbas, embora se desse com gente das classes mais modestas desta cidade.

·      Vestia-se mal, lamentavelmente mal.

·      Teve a imprudência de hostilizar alguns dos figurões literários e jornalísticos do seu tempo: Edmundo Bittencourt, Coelho Neto, João do Rio, Olavo Bilac, todos personagens de seu livro “Memórias do Escrivão Isaías Caminha”, sob nomes mais ou menos transparentes.

·      Dirigiu uma revista efêmera, a “Floreal”.

·      Foi um “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais, da hipocrisia e da falsidade que permeiam as relações de homens e mulheres na sociedade carioca do seu tempo.

·      Ao ser solicitado pela emergência de um novo romance que lhe agitava o cérebro, conta-se que Lima Barreto pedia ao seu amigo, o renomado psiquiatra Juliano Moreira, diretor do hospício de alienados, que lhe “arranjasse uma hospedagem por alguns meses”. Saia do hospício com um romance pronto.

·      Em 1903, por meio de um concurso público, iniciou carreira no setor burocrático da Secretaria de Guerra e também sua intensa colaboração com a imprensa do Rio de Janeiro

·      Em 1911, publicou seu mais famoso romance, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, nas páginas do “Jornal do Commercio”, pagando depois, do próprio bolso, a edição em livro, lançada em dezembro de 1915

·      Raimundo Silva, seu amigo, explicou que sua boemia começou por causa de uma humilhação que nunca esqueceu. Quando ainda era aluno na Politécnica, Lima se apaixonou por uma moça de distinta família do subúrbio. Ao pedir sua mão em namoro, teve o pedido negado veementemente pelos pais da moça: “Era só o que faltava. Um mulato…”

·      Criador do romance de crítica social sem doutrinarismo dogmático, segundo Monteiro Lobato (que editou seu último livro em vida), Lima Barreto morreu, solteiro, em 1 de novembro de 1922, de ataque cardíaco, na antiga casa de Todos os Santos.

·      Seu caixão foi transportado em vagão fúnebre, ligado a um trem do subúrbio, chegando à estação Central às 17h15, do dia de finados. Foi enterrado no mesmo dia, no carneiro n. 5403, do cemitério de S. João Batista. Em vida, Lima dissera que queria ser sepultado naquele cemitério, na companhia de vários outros grandes escritores da nossa literatura.

·      Félix Pacheco, na época Ministro das Relações Exteriores, foi a única personalidade de renome a acompanhar seu enterro.

·      Seu pai, já enfermo, não resistiu ao doloroso golpe da morte do filho, e morreu 48 horas depois de Lima.

 

Antonio Torres (1885–1934), não o escritor baiano, atual ocupante da cadeira 23, obviamente, mas o polemista mineiro, autor das “Pasquinadas Cariocas” (1921), foi quem primeiro deu a senha: “o único romancista verdadeiro e que é um dos grandes homens deste pais, não faz parte da Academia: é Lima Barreto”.

Portanto, ao terminar esse breve perfil biográfico, quero reforçar as palavras de Torres.

Quem sabe, não seja o momento da Academia Brasileira de Letras, no pórtico dos seus 120 anos, escrutinando seus centenários estatutos, encontrar alguma forma de justificar, finalmente, a entrada “triunfal” de Lima Barreto, esse “psicólogo amargo das ruas cariocas”, entre os seus membros, em uma eventual categoria “ocupantes póstumos”, complementar à categoria “patronos”?

É uma ideia. Ou uma teoria.

Porque como lembrou o próprio Lima Barreto, na introdução da sua coletânea de contos, “Histórias e sonhos” (1920): “A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois como afirma Carlyle: ‘men of letters are a perpetual priesthood’ (homens de letras são um sacerdócio perpétuo)”.

Salve Lima Barreto!

*C.S. Soares é editor, CEO da Biblioteca Digital Cidade Livro (https://cidadelivro.com.br) e membro titular do grupo de trabalho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Bibliotecas da Cidade do Rio de Janeiro (PMLLB Rio)