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O pastor que desafiou a ditadura

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Completar 95 anos não é pouca coisa. É muita vida vivida, sofrida e fruída. Quando se trata de uma vida toda ela de serviço aos mais pobres e humildes, de defesa dos direitos humanos, de exercício do profetismo, é uma grande celebração de ação de graças.  Ainda mais quando o aniversariante está lúcido e pode participar da festa.

É assim que o Brasil celebrou neste dia 25 de outubro os 95 anos do cardeal emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.  Frade franciscano, teólogo e doutor em Letras pela Sorbonne, em Paris, foi ordenado bispo pelo beato papa Paulo VI.  Do coração e da pena daquele papa inteligente, culto e inquieto pelos frutos do pós-Concílio que não deixavam de trazer perplexidade, saiu a nomeação deste que foi a grande figura de Pastor do Brasil nos anos de chumbo.

Ao lado de seus bispos auxiliares dom Celso, dom Luciano, dom Angélico, dom Mauro e outros tantos, dom Paulo governou a arquidiocese de São Paulo assumindo um claro compromisso com os pobres e desfavorecidos.  A isso aliou a luta pelo fim das torturas que o regime militar praticava em seus cárceres e porões, e pelo restabelecimento da democracia no Brasil. Sua atuação pastoral foi integral e prioritariamente voltada para os habitantes das periferias da grande metrópole de São Paulo, para os trabalhadores e para a formação de Comunidades Eclesiais de Base. Era um incansável defensor dos direitos humanos, sobretudo  dos mais pobres. Ficou conhecido como o Cardeal dos Direitos Humanos, principalmente por ter sido o fundador e líder da Comissão Justiça e Paz de São Paulo.  

O momento-cume deste seu compromisso aconteceu há 41 anos, no dia 25 de outubro de 1979. O jornalista judeu Vladimir Herzog havia sido preso, torturado e morto nas dependências do DOI-CODI de São Paulo. Os militares sustentavam a tese de que Vlado – como era conhecido – havia se suicidado.   Na catedral da Sé da capital paulista, o cardeal juntamente com o rabino Henry Sobel, fez um culto ecumênico que até hoje é um marco na memória do povo brasileiro como ato de resistência contra a cruel ditadura que oprimia o país e matava jovens estudantes, intelectuais e pessoas idealistas. A catedral lotada respirava respeito e coragem, liderada por seu arcebispo e pelo rabino. Desmascarava-se a mentira do suicídio de Vlado e se denunciava seu assassinato, assim como se celebrava o direito à verdade que devia ser mostrada ao povo brasileiro, cansado de mentiras e falácias.

Também com o rabino Sobel, dom Paulo notabilizou-se por criar uma ponte entre as comunidades judaica e a católica pelo fim do arbítrio e restabelecimento das liberdades democráticas. Entre 1979 e 1985 coordenou juntamente com o Pastor Jaime Wright, de forma clandestina, o projeto “Brasil Nunca Mais”. Este projeto tinha como objetivo evitar o possível desaparecimento de documentos durante o processo de redemocratização do país. O trabalho foi realizado em sigilo e o resultado foi a cópia de mais de um milhão de páginas de processos do Superior Tribunal Militar (STM). Este material foi microfilmado e remetido ao exterior diante do temor de sua apreensão. Em ato público realizado dia 14 de junho de 2011, foi anunciada a futura repatriação, digitalização e disponibilização deste acervo para todos os brasileiros. O livro “Brasil nunca mais” é fruto do trabalho de dom Paulo feito sob risco de perseguição e morte em um tempo de muita repressão.

Durante sua gestão à frente da arquidiocese paulistana, as Pastorais Sociais conheceram grande crescimento.  Além de haver iniciado algumas, deu impulso a outras, que até hoje vigoram e trabalham junto à população carente da cidade.  Com sua irmã , a médica Zilda Arns, fundou a Pastoral da Criança, que fez cair a níveis incomparavelmente mais baixos as taxas da mortalidade infantil no Brasil. 

Como todos os profetas, o ministério e magistério episcopal de dom Paulo teve dores e sofrimentos.  Não foi compreendido pelas classes abastadas de sua diocese.  Sofreu incompreensão mesmo por parte de membros da hierarquia da Igreja Católica. Viu sua diocese ser dividida e restringido seu campo de atuação. Com fidelidade inquebrantável, a tudo suportava e não abandonava suas convicções. Todas as suas opções decorriam de sua fé no Deus dos pobres que é o Pai de Jesus Cristo e, portanto, não podiam ser abandonadas ou mitigadas.

Hoje, o Pastor celebra aniversário.  E o povo de Deus o cerca de carinho e gratidão por essa vida longa, bem vivida e cheia de frutos.  O Brasil agradece ao Pastor que soube atravessar os anos de chumbo e os perigos da repressão, abrindo caminho para que suas ovelhas pudessem aceder aos pastos onde a vida floresce e a paz é construída.  Que sua profecia nos inspire e nos mantenha firmes no caminho do Evangelho, que é boa notícia para os pobres e sofredores deste mundo. Neste obscuro momento que vive nosso país, possa ele ser uma luz que confirma o lema de seu brasão episcopal: “De esperança em esperança”.

 * professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc).