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Sobre cerveja, mulheres e feminismo

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Podemos perceber atualmente, em determinados setores da sociedade, a prioridade dada à arte do “fazer à moda antiga”: a volta aos partos cada vez mais naturais em detrimento às cesarianas com dia e horário marcados, a amamentação prolongada, os cursos de slow food, a valorização da comida orgânica, a costura, a marcenaria, a culinária... Nessa mesma vertente do produzir e consumir conformes a um estilo de vida mais consciente, natural e protagonizado pelas pessoas, em detrimento às máquinas, está em voga a produção de cerveja artesanal.

Há diversas microcervejarias e cervejeiros caseiros no Rio de Janeiro e em todo Brasil. As produções são por vezes maiores e por vezes em menor quantidade, para consumo próprio e para atender a pequenos grupos de consumidores. Foi nessa pegada que surgiu o projeto da Cerveja das Mulheres.

Como mulher de cervejeiro caseiro – daqueles que comprou desde a primeira panela assim como pega garrafas com amigas e amigos, as lavas, higieniza e engarrafa a bebida para dar vazão à produção –, um dia das férias do ano de 2015 recebi o convite de meu companheiro para fazermos uma cerveja juntos. Achei a ideia genial e partimos para a elaboração da receita e para a produção propriamente dita: moagem dos grãos, brassagem, balde de fermentação e envase, uma semana depois. Demos à nossa primeira produção, uma Amber Ale, o nome de Lenin.

Compartilhamos a mesma profissão. Somos ambos professores de filosofia, formados na mesma universidade em período concomitante. No entanto, cada um de nós alargou a própria formação: eu, para o campo das Letras e da área social; ele, para o mundo da cerveja. Chamou-me atenção o fato de nunca ter pensado em produzir minha própria cerveja, tendo tudo a disposição, e depois do convite confesso que fiquei curiosa com os motivos de não ter pensado nisso antes. Talvez por medo de estar no mesmo campo de atuação do companheiro, mais uma vez. Mas minha curiosidade se transformou em ação, que me levou a uma proposta que lhe fiz: quero produzir cerveja com um grupo de mulheres.

Assim surgiu a proposta da Cerveja das Mulheres. Reuni um grupo de mulheres na cervejaria para a produção de nossa primeira cerveja. Uma Cerveja Artesanal Feminista. A atividade se iniciou em dezembro de 2015 e continua, até hoje.

Cada edição homenageia uma importante mulher da história. A primeira delas foi Luisa Mahin. Escravizada no Brasil, viveu no século XIX e pouco de sua história é conhecida, do mesmo modo que quase nada sabemos sobre os feitos de outros heróis afrodescendentes de nosso país. Foi mãe de Luís Gama, o poeta que eternizou a mãe em seus versos. Assim como no belo relato do filho, encontramos apenas em outras bibliografias fragmentos sobre a história da guerreira Luisa Mahin. Sabemos que lutou ferrenhamente contra a escravidão e participou da revolta dos Malês. Uma tardia mas merecida homenagem veio com a primeira Cerveja das Mulheres, que tem como slogan ser a “Cerveja da Mulher Guerreira”.

A segunda edição homenageou D. Maria Prestes. Por tratar-se de uma homenageada viva, pudemos consultá-la e a mesma tanto aceitou a homenagem como escolheu o estilo de cerveja, participou no dia da produção e do evento de lançamento, dando ótimos depoimentos sobre sua trajetória histórica de mulher guerreira.

O que move o projeto da cerveja produzida por mulheres desde o início é uma pergunta: Qual é o lugar da mulher no mundo da cerveja? As respostas a essa pergunta são muito instigantes. A princípio, pensamos na mulher nas propagandas de cervejas populares, muito consumidas no Rio de Janeiro e no Brasil. Constata-se com muita facilidade que ela torna-se um produto, juntamente com a cerveja vendida: seja pelo modo como é veiculada sua imagem ou pelas “frases de efeito”, criadas com o mesmo intuito de objetificação do corpo feminino.

A mulher não é vista no ambiente cervejeiro popular como a consumidora, que muitas vezes é. Esse tópico se desdobra ainda em outra problemática: a propaganda da cerveja é feita visando o público masculino e heterossexual. Pensemos ainda que a imagem física dessa mulher ao pensar em tais propagandas é a “loura”; por vezes vemos algumas mulheres morenas. Desconheço uma mulher negra nesse papel de protagonista das propagandas de cerveja, representada como as outras por uma atriz.  A única referência à mulher negra que encontrei pesquisando a propaganda de cerveja foi uma pintura, de elevado teor pejorativo, com uma frase absolutamente agressiva e que a estereotipa. Poderíamos entender a pouca representatividade das mulheres negras nesse ambiente como algo positivo, por ser menos uma agressão a elas, tão desrespeitadas em vários âmbitos da sociedade e do imaginário nacional, mas infelizmente essa é só mais uma evidência do racismo, outra vez as colocando em papeis subalternos, nunca de protagonistas, ou praticamente negando sua existência em um país com mais de 50% de população negra e parda. Tais características nos levam a constatação de que a propaganda de cervejas populares seja, além de machista, de visar o público masculino heterossexual, também racista.

Analisando a literatura especializada em história da cerveja, percebemos que a discussão que se refere ao lugar da mulher nesse universo é bastante profunda e interessante de ser revista e investigada com atenção. Existem propagandas de cervejas menos populares que não veiculam imagens desrespeitosas das mulheres, que sequer mostram figuras femininas ou humanas. Através de campanhas, é possível reverter a imagem preconceituosa, anteriormente descrita, se conseguirmos convencer os consumidores e responsáveis pela veiculação de propaganda no Brasil do óbvio, ou seja, de que as imagens e textos proferidos são machistas, racistas e direcionados ao público heterossexual apenas, o que não contempla as pessoas reais que compram o produto. Ou mesmo, se for necessário, é possível reivindicar o uso da força judicial para a defesa dos direitos das mulheres, insistentemente desrespeitados em tal ambiente propagandístico. Nesse caso, então, resolvendo o problema da veiculação de imagem preconceituosa da mulher, associada a esses outros problemas destacados, nossa questão principal, a de seu lugar no mundo da cerveja, já estaria solucionada? Continuemos investigando.

Um dado interessante que os viajantes brasileiros amantes de cerveja percebem em países de tradição cervejeira, como Alemanha e Bélgica, por exemplo, é que o preço da bebida é baixo e sua qualidade e variedade, elevadas. A taxação da cerveja na Alemanha, por exemplo, é pequena, pois a bebida nesse país é considerada alimento e taxada como tal, sendo, portanto, cobrados impostos mais baixos que os aplicados no Brasil, barateando o produto. No entanto, devemos observar que a maneira como a cerveja é vista hoje nesses países e até mesmo o modo como são cobrados os impostos sobre sua venda têm muito a ver com sua relação na história com as mulheres.

Em seus primórdios, a produção de cerveja era uma atividade caseira, domiciliar, do mesmo modo que eram produzidas nas casas o pão e a comida. Cabia às mulheres o preparo tanto das comidas para manter as residências quanto a produção da cerveja e do pão (atentando para o fato de que ambos produtos utilizam-se praticamente dos mesmos ingredientes) para alimentar toda família: filhas, filhos, demais parentes, dentre eles os homens, que saiam à caça, à guerra ou ao trabalho e voltavam para casa para se alimentarem, tanto de comidas quanto com bebidas.

Além dessa primeira revelação surpreendente que associa diretamente a mulher à produção de cerveja, seguindo a análise de textos ligados ao tema descobrimos ainda, por exemplo, que até o século XVI, no norte da Alemanha as noivas recebiam, como parte de seu enxoval, os utensílios para produção de cerveja; que talvez devido à maternidade, as mulheres eram associadas à capacidade de transformar cereais em alimentos, entre eles a cerveja; que as virgens da cultura inca, antes de serem oferecidas ao deus Sol, preparavam a chincha, uma cerveja de milho, para o Imperador; encontram-se em registros do século XIII de uma pequena cidade inglesa informações de que apenas 8% dos cervejeiros eram homens e que, além disso, os excedentes da produção caseira de cerveja produzida pelas senhoras inglesas suscitara nas mesmas a possibilidade de explorar suas habilidades como um negócio que se tornou importante complemento financeiro para as famílias; durante a colonização da América do Norte, essa tradição de produção de cerveja continuou entre as mulheres: as amigas preparavam uma cerveja especial, chamada brinde Ale, vendida para arrecadar dinheiro para a noiva. É sabido que tal tradição permanece ainda hoje em várias regiões nos Estados Unidos.

No entanto, ainda no século XVI, como tal atividade começou a representar a independência financeira das mulheres em relação aos maridos, gerou reações moralistas seguidas de leis que restringiam a prática feminina de produção de cerveja.

Mas em que momento surgiu essa imagem masculina da cerveja que temos hoje? A de um negócio masculino, um produto feito de homens para homens? Como vimos, o protagonismo e a independência da mulher, assim como a possibilidade de comercialização do produto, se tornaram cada vez mais evidentes. E com a visão de que ali poderia haver um lucrativo “negócio”, no final do século XVIII a produção de cerveja despertou a presença masculina, associada às grandes empresas, às novas tecnologias e à comercialização, logo dominadas pelos homens. Portanto, de uma produção doméstica, caseira, familiar e entre amigas, a cerveja passou a ser um produto comercializado em grande escala.

A retomada da mulher nesse ambiente da cultura cervejeira, tão caro e familiar a ela, se deu mais significativamente durante a Primeira Guerra, fruto da necessidade de suprir os soldados nas frentes de batalha, e com destaque posteriormente, como consumidoras exigentes e profissionais cervejeiras.

Quando sugeri produzir cerveja entre mulheres não tinha dimensão de onde a pergunta: Qual é o lugar da mulher no mundo da cerveja? me levaria, junto com minhas companheiras. Percebo agora que o estudo sobre cerveja tem muito a revelar a respeito de mais um dos mecanismos adotados na história para retirar o protagonismo feminino e que se nós, mulheres, consumidoras, produtoras, amantes de cerveja e da problemática feminista não nos debruçarmos sobre essas questões, elas continuarão a passar por despercebidas.

Por isso a necessidade de uma produção consciente e política de Cerveja Artesanal Feminista. Cerveja Artesanal, porque o projeto busca retomar esse processo de produção própria, entre mulheres, dando-lhes cada vez mais protagonismo na elaboração e confecção final do produto, associada ao estudo sobre cerveja, à leitura e à discussão histórica sobre o tema. Cerveja Artesanal Feminista, porque busca-se rever a participação e o papel da mulher no processo de produção e elaboração dessa que é a bebida alcoólica mais popular do mundo, presente nos encontros familiares, nas confraternizações entre amigas e amigos, responsável pela aquisição de novas amizades. Feminista, porque o projeto coloca em evidência o atual lugar estereotipado da mulher nas propagandas populares de cerveja e no imaginário ligado ao tema, pois sua objetificação é ainda mais cruel quando conhecemos que seu lugar de sujeito no mundo cervejeiro foi usurpado, foi invertido. De sujeito do conhecimento e da produção ela foi silenciosamente transformada em objeto mudo e físico de apreciação e consumo. E mesmo as cervejas que não se propõem a essa ridicularização preconceituosa das mulheres em suas propagandas, quando silenciam a respeito de seu fundamental papel nesse universo e como mantenedoras da possibilidade de existência da bebida hoje as desrespeitam do mesmo modo.

A propósito, deixo registrado aqui que esse é o primeiro texto que sistematiza a necessidade de existência desse projeto de produção de Cerveja Artesanal Feminista. A Cerveja da Mulher Guerreira – Artesanal e Feminista está aí, pronta para revirar o lugar da mulher no mundo da cerveja. Todas e todos ainda vão ouvir falar muito dela.

*Doutora em Letras, Bacharel e Licenciada em Filosofia, aspirante a cervejeira feminista