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Parlamentarismo de fantasia

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Está tramitando no Senado um projeto de Emenda Constitucional, PEC 9/2016, subscrito por vários Senadores e tendo a seguinte ementa: “Altera a Constituição Federal para instituir o Sistema Parlamentar de Governo”, ou seja, muda o sistema de governo do Brasil, substituindo o Presidencialismo pelo Parlamentarismo. Essa é a essência do projeto, mas alguns de seus subscritores e apoiadores, cientes de que o povo brasileiro já recusou o Parlamentarismo por meio de um plebiscito, procuram atenuar o alcance da proposição, dizendo que se está propondo apenas uma pequena alteração, o estabelecimento de um sistema “semipresidencial”.

O texto do projeto foi divulgado pelo Senado e seu exame demonstra que se trata, na realidade, de uma proposta fantasiosa e improvisada, muito provavelmente inspirada na idéia de que se fracassar a pretensão de “impeachment” da Presidente Dilma Roussef haverá a alternativa de redução de seus poderes presidenciais, pela transferência da chefia do governo a um Primeiro Ministro, como é típico do Parlamentarismo. Cabe aqui, desde logo, uma observação de grande relevância: o que se está propondo é a alteração da Constituição de 1988 - a “Constituição cidadã” na feliz expressão de Ulisses Guimarães, Constituição elaborada com intensa participação popular - mediante decisão de parlamentares, sem ouvir o povo. Na realidade, não há uma única referência a uma consulta popular, por meio de plebiscito ou referendo, para saber se o povo, que é, por assim dizer, o titular dos direitos sobre a Constituição, está de acordo com sua reforma num ponto de substancial importância.

É também oportuno observar que já houve, anteriormente, duas experiências parlamentaristas no Brasil, uma no período monárquico e outra no período republicano. A primeira delas ocorreu em 1847, quando o Imperador D. Pedro II, buscando reduzir os obstáculos ao seu governo, criou a figura do Presidente do Conselho de Ministros, numa tentativa de amenizar as resistências à excessiva concentração de poderes nas mãos do Imperador. Essa experiência durou muito pouco, pois as diferentes correntes que disputavam o poder político fizeram um acordo e em 1853 compuseram um Gabinete de Conciliação, no qual as duas estavam igualmente representadas no Ministério, tendo forte influência sobre o governo. Esse, aliás, é um exemplo que deveria ser analisado com objetividade e espírito conciliador pelos que hoje estão propondo um mal-disfarçado e mal-elaborado projeto de Parlamentarismo.

A segunda experiência de Parlamentarismo no Brasil ocorreu a partir de 1961, na vigência da Constituição de 1946. Em 25 de Agosto daquele ano ocorreu a renúncia do então Presidente da República Jânio Quadros e houve muitas restrições à entrega da Presidência ao então Vice-Presidente João Goulart, que tinha grande ligação com as classes trabalhadoras. Para superar as resistências e preservar a normalidade institucional o Congresso Nacional aprovou, em 2 de Setembro de 1961, uma Emenda Constitucional implantando o Parlamentarismo no Brasil, dando-se a João Goulart a posse na Presidência mas com os poderes limitados. Mas a própria Emenda Parlamentarista dispunha que seria realizado um plebiscito para que o povo manifestasse sua preferência, mantendo o Parlamentarismo ou restaurando o Presidencialismo. Por larga margem de votos o povo rejeitou o Parlamentarismo.

O tema do sistema de governo voltou à primeira linha das questões políticas brasileiras quando, em 21 de Abril de 1993, foi realizado um plebiscito para que o povo decidisse qual o sistema político de sua preferência, colocando-se como opções a Monarquia ou a República Presidencial e, neste caso, o Presidencialismo ou o Parlamentarismo. Por mais de dois terços dos votos o povo manifestou sua preferência pela República Presidencial, rejeitando, portanto, a Monarquia e o Parlamentarismo. Um dado que merece destaque é que o povo, cuja vontade deve ser preponderante numa ordem político-jurídica democrática, foi consultado e decidiu claramente sobre sua preferência. Isso deve ser ressaltado porque na PEC ora em tramitação no Senado não está prevista a consulta ao povo, nem por meio de consulta prévia, por um plebiscito, nem através de referendo, confirmando a decisão do Legislativo. Em decorrência disso, pode-se dizer que seria uma afronta à Constituição democrática, feita e aprovada pelo povo, uma decisão alterando um ponto substancial que é o sistema de governo.

A par desses aspectos, que são de extrema relevância, deve-se observar ainda que o Projeto está mal redigido, com erros de linguagem e contradições, além de impropriedades e obscuridades. Com efeito, na PEC 9/2016 está expressamente disposto que o artigo 14, parágrafo 3º-A, da Constituição terá a seguinte redação: “É exigida a idade mínima de trinta anos para Primeiro Ministro”. Mais adiante dispõe a PEC, textualmente, que o artigo 86-E estabelecerá o seguinte: “O Primeiro Ministro será escolhido entre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, preferencialmente entre os membros do Congresso Nacional”. Como está mais do que evidente, há uma contradição na fixação da idade mínima do Primeiro Ministro, o que demonstra o pouco cuidado, a improvisação, na preparação da PEC. Além disso, fica também evidenciada a intenção de assegurar preferências para os membros do Congresso Nacional. Com efeito, no artigo 2º, inciso I, da PEC está disposto que “o Presidente da República será auxiliado pelo Ministro-Coordenador, de sua livre nomeação e exoneração, cuja escolha deverá recair, preferencialmente, sobre um membro do Congresso Nacional”.

O que acaba de ser exposto é suficiente para deixar evidente a improvisação e o descuido na elaboração da PEC 9/2016, através da qual se pretende introduzir mudança substancial na Constituição brasileira de 1988, que é autêntica e legítima expressão da vontade do povo brasileiro.  E não foi prevista uma consulta ao povo, para que dê seu consentimento à introdução de tais mudanças na Constituição ou para que rejeite tais inovações. Por tudo isso, o que se espera é a rejeição dessa proposta para que seja preservada a soberania da vontade popular.

* jurista