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Demarcação de áreas indígenas e demarcação de competências constitucionais

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A demarcação das áreas indígenas está muito atrasada, mas a demarcação das competências dos Poderes da União já foi expressa e claramente feita pelos constituintes de 1988. Qualquer tentativa de afrontá-la é flagrantemente inconstitucional, pois contraria um princípio fundamental da Constituição, que é a separação dos Poderes feita pelos constituintes tomando por base a natureza das atribuições de cada um. Com efeito, a demarcação das terras indígenas, que por expressa determinação constitucional o Poder Executivo federal já deveria ter concluído em Outubro de 1993, é atribuição do Poder Executivo por sua própria natureza, mas está ainda em grande atraso. E isso vem dando margem a manobras imorais e inconstitucionais de parlamentares ruralistas visando anular os direitos que a Constituinte de 1988 atribuiu expressamente aos índios e às comunidades indígenas, reafirmando princípios éticos e jurídicos já anteriormente consagrados na ordem jurídica brasileira.

Um dado de importância que deve ser uma vez mais ressaltado em face das mais recentes tentativas de burlar a Constituição, é que, diferentemente do que ocorre com as terras indígenas, a demarcação das competências dos Poderes da União já foi feita claramente pelos constituintes de 1988. Em respeito à vontade do povo brasileiro manifestada na Constituinte, as manobras tentando burlar essas disposições constitucionais devem ser veementemente repelidas para que não se desmoralize a ordem democrática constitucional. O que vem ocorrendo agora é que, absurdamente, foi criada na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial sobre a Demarcação de Áreas Indígenas, integrada por deputados da bancada ruralista.

As terras indígenas, por disposição constitucional, integram o patrimônio da União e,  segundo disposição expressa do artigo 67 das Disposições Transitórias da Constituição, a União deveria ter concluído no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição, ou seja, até 5 de Outubro de 1993. A omissão dos governos federais no cumprimento dessa obrigação constitucional- pois até agora não foi feita nem a metade das demarcações- tem favorecido as manobras imorais, antijurídicas e escancaradamente oportunistas de parlamentares da bancada ruralista, que colocam acima de tudo seus interesses econômicos, com absoluto desprezo pela Constituição e pelos direitos fundamentais que ela consagra expressamente, assim como pela discriminação das competências expressa na Constituição em coerência com a separação dos Poderes e com a distribuição das competências adequada à natureza de cada um.  

Desde o ano 2000 está em curso no Congresso Nacional uma proposta de Emenda Constitucional, a PEC 215, que, contrariando a Constituição e com evidente má fé, pretende transferir para o Poder Legislativo, a função de demarcar as áreas indígenas. É tamanho o absurdo dessa proposição que parece estar havendo algum engano: um órgão do Poder Legislativo teria a incumbência de executar uma tarefa que é, obviamente, de natureza administrativa e que, evidentemente, está incluída nos encargos que a Constituição atribuiu ao Poder Executivo. Para evidenciar ainda mais o absurdo, é oportuno assinalar que a realização da demarcação exige pessoal administrativo especializado, além de equipamento também especial. Acrescente-se, ainda, que no caso da demarcação de áreas indígenas o trabalho deverá ser feito em locais que, muitas vezes, são de difícil acesso e exigem a colaboração de outros setores da Administração Pública, como, por exemplo, o uso de helicópteros ou a travessia de rios e lagos. Como é mais do que óbvio, o Legislativo não dispõe desse pessoal especializado e desse equipamento, não tendo os meios necessários para a realização dessa tarefa. 

A referida PEC 215 foi proposta pelo deputado Almir Sá, do PRB de Roraima, que entre seus títulos tem o de Presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Roraima. E a estranha manobra agora em curso na Câmara dos Deputados é liderada pelo Deputado Omar Serraglio, do PMDB do Paraná, que teve sua campanha eleitoral financiada por grandes grupos empresariais da área do agronegócio. Esse mesmo deputado já foi Relator da PEC 215 e agora é Relator da Comissão Especial sobre a Demarcação das Áreas Indígenas. Essa Comissão aprovou recentemente um relatório apresentado pelo deputado-Relator, não só acatando todas as restrições aos direitos indígenas constantes da PEC 215 mas acrescentando outras restrições, afrontando disposições expressas da Constituição sobre os direitos fundamentais, o que já torna inconstitucional a proposta. Além disso, há, nessa proposta, outra evidente inconstitucionalidade: o artigo 49 da Constituição faz a enumeração expressa das competências do Congresso Nacional e, como é óbvio, não se encontra ali qualquer atribuição que, por sua natureza, deva situar-se na área do Poder Executivo, como é o caso da demarcação das áreas federais afetadas pela ocupação indígena.

Por tudo o que foi aqui exposto, fica evidente a inconstitucionalidade das propostas contidas na PEC 215 e dos acréscimos feitos por meio do Relatório aprovado pela Comissão Especial de Demarcação das Áreas Indígenas da Câmara dos Deputados. Em respeito à Constituição e aos direitos fundamentais que ela consagra e garante devem ser veementemente repudiadas essas propostas antiéticas e inconstitucionais, para preservação da ordem constitucional democrática brasileira.

 

 

Dalmo de Abreu Dallari é jurista