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Deputados agridem a Constituição

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Fingindo exercer o controle das contas de ex-presidente da República, a Câmara dos Deputados praticou ato que não é de sua competência, mas de competência exclusiva do Congresso Nacional, criando assim um precedente para novas inconstitucionalidades que fazem parte de um jogo político subterrâneo e que visam, sobretudo, dar proteção ao Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acusado de corrupção. No dia 6 deste mês a Câmara dos Deputados, em votação simbólica, aprovou as contas de vários ex-presidentes, referentes aos governos de 1992 a 2008, numa encenação de moralidade, para preparar a prática de uma inconstitucionalidade.

A leitura simples e bem intencionada da Constituição vigente, que é norma superior e vinculante, deixa evidente que na composição do Poder Legislativo foram estabelecidas três situações muito bem definidas. Relembrando e ressaltando o óbvio, é, entretanto, oportuno assinalar que a Constituição de 1988 foi minuciosa quanto aos Poderes do Estado e às respectivas atribuições. Assim é que no Titulo IV tratou da organização dos Poderes, dispondo que haverá três Poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, estabelecendo normas expressas sobre sua organização e suas atribuições, começando, no capítulo I, pelo Poder Legislativo. E aqui é importante assinalar que a Constituição estabeleceu disposições precisas e específicas a respeito da organização do Poder Legislativo, que, nos termos expressos dos artigos que integram esse Titulo, compreende o Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, cada um deles, tanto o Congresso no seu conjunto, quanto a Câmara dos Deputados e o Senado, com sua identidade própria e suas atribuições específicas, que são expressamente designadas em seguida.

Um dado de fundamental importância é que, embora a Câmara dos Deputados e o Senado Federal integrem o Congresso Nacional, a Constituição estabeleceu competências próprias para cada uma dessas três unidades. Assim é que no artigo 48 são enumeradas as atribuições gerais do Congresso Nacional, especificando as matérias sobre as quais cabe a ele dispor, com a sanção do Presidente da República. E merece especial destaque o artigo 49 da Constituição, que começa com este enunciado: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional”, vindo em seguida dezessete incisos especificando as matérias. Obviamente, trata-se, nesse caso, de matérias sobre as quais o Congresso no seu todo, compreendendo a Câmara dos Deputados e o Senado, é que tem a competência para tomar decisões, o que significa que estas devem ser tomadas pelo conjunto dos integrantes do Congresso Nacional, como uma unidade, e não pelos órgãos integrantes do Congresso decidindo separadamente.

Com efeito, assim como existe esse dispositivo constitucional estabelecendo as competências exclusivas do Congresso Nacional, no artigo 51 se estabelece o que, nos termos da Constituição, “compete exclusivamente à Câmara dos Deputados”, dispondo-se expressamente no artigo 52 sobre o que “compete privativamente ao Senado Federal”. É óbvio que o fato de terem competência privativa para decidir sobre determinadas matérias não lhes tira a condição de integrantes do Congresso Nacional. Da mesma forma, a atribuição dessas competências privativas de cada um dos integrantes não impede que o Congresso Nacional, entendido aqui o conjunto das Casas Legislativas, tenha suas competências específicas e exclusivas. Quanto a estas, é muito claro e preciso o artigo 49 da Constituição, acima referido, no qual se encontra uma especificação das matérias de competência exclusiva do conjunto, ou seja, competência  que deve ser exercida pelo conjunto necessário das duas Casa do Legislativo.

As matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, no seu conjunto necessário, são enumeradas em doze incisos, cabendo aqui especial destaque ao inciso IX, que tem a seguinte redação: “julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo”. Assim, pois, nos termos expressos, claros e precisos do artigo 49, inciso IX, da Constituição, “é da competência exclusiva do Congresso Nacional julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República”. Ora, apesar da clareza desses dispositivos, o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, usou de seus poderes, e, certamente, de argumentos que não foram revelados, para levar os Deputados a participar de uma decisão que constitucionalmente não lhes cabe, aprovando as contas de vários ex-Presidentes da República.

É profundamente lamentável que a Câmara dos Deputados, órgão que teoricamente representa o povo brasileiro e deve agir na defesa de seus interesses, seja submissa a desvios dessa natureza, que configuram agressões à Constituição e degradam a moralidade pública, acarretando o descrédito das instituições democráticas.

               

* Dalmo de Abreu Dallari é jurista