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Jardim Botânico – Precioso bairro do Rio de Janeiro

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Em julgamento que participei, lavrei voto vencido sobre litígio envolvendo aumento de gabarito de construção no bairro do Jardim Botânico. 

Na atividade jurisdicional surge uma luz que ilumina minhas razões de fato e de direito, e dela não posso fugir, nem transigir. 

É possível que os eminentes Colegas tenham maior razão em uma visão realista e mais lúcida da questão, e o meu respeito foi imediatamente acolhido, como de índole e dever de quem participa da grandeza de um Colegiado.

Contudo, gostaria de externar o meu posicionamento à época, como se estivesse lançando uma semente ao solo, no abreviado voto que segue adiante: 

Divergi da respeitável e douta maioria por entender que minha consciência e meu esforço intelectual e profissional devem ser direcionados ao bem estar comum, em favor da população e para que a cidade do Rio de Janeiro continue maravilhosa e o Jardim Botânico sendo bairro de referência histórica e cultural em todo o Brasil. E estou certo de que o fundamento constitucional e legal assim o permitem.

Existem lugares bucólicos, enigmáticos, acolhedores, que dão paz à alma e que fazem as pessoas felizes. Um destes lugares é o Jardim Botânico, bairro abençoado pelo Cristo Redentor.

Localizado na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, o Jardim Botânico é um bairro nobre e histórico. Nobre, pela localização privilegiada, cercado pelas florestas, pela Lagoa Rodrigo de Freitas e pelo Corcovado, sendo próximo do centro e ao mesmo tempo ligado a outros bairros como Gávea, Lagoa, Humaitá e Alto da Boa Vista.  Histórico, pois D. João VI escolheu em 1808 o local para criar o Horto e o Jardim Botânico. 

Portanto, este lugar próximo do Hipódromo, da Lagoa, da Floresta da Tijuca, do Horto, do Parque Lage, pequeno, charmoso e lindíssimo, se chama Bairro do Jardim Botânico, que tem esse nome por ter a grandiosa felicidade de abrigar o Jardim das Palmeiras Imperiais.

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 216, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem”, dentre outros, “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. 

Cabe ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, assim como, compete aos entes federativos a preservação do meio ambiente. 

Não se pode perder de vista ainda que a proteção ao patrimônio cultural é considerada um direito fundamental de terceira geração, assim considerado o direito ao meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, paz e outros direitos difusos, cuja titularidade coletiva consagra o princípio da fraternidade. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000). A tutela desses direitos constitucionalmente garantidos tem por finalidade promover o bem estar social e a melhor qualidade de vida da coletividade.

Transformar um bairro histórico como o Jardim Botânico por meio da expansão imobiliária desmedida, abrindo sério precedente, significa fazer de seu encantamento areia de uma ampulheta. Os animais silvestres têm a possibilidade de se ausentarem, refugiando-se no fundo da mata. Mas, o cidadão fica presente e se prejudica com o estresse causado pela descaracterização das ruas, ciente de que a beleza que viu não será mais vista pela geração posterior.

Exatamente na rua Jardim Botânico, importante eixo viário da Zona Sul carioca, dando acesso aos diversos cantos do Município é que se encontra o ponto nodal deste litígio em que a empresa tem a pretensão de construir um edifício aumentando  o gabarito nas laterais. O terreno, que é a cabeça de toda a quadra, abrange a edificação nas ruas laterais onde, por Decreto Municipal (Dec. 20.939/01), não se pode construir além da previsão legal.

Se assim acontecer, a Rua Jardim Botânico, que já tem o tráfego estrangulado, ficará pior, causando reflexos negativos às ruas que compõem o Bairro. 

Alegam os interessados pelo empreendimento que o endereço do imóvel não se insere no rol do Dec. 20939/01. Sustentam que a Rua Jardim Botânico é definida urbanisticamente como “centro de bairro” e possui o gabarito maior. 

Não se pretende inviabilizar a construção do edifício que se funda em garantias constitucionais tais como o exercício da livre atividade econômica, geração de renda, emprego e tributos. Todavia, deve-se buscar o equilíbrio com outros valores constitucionais de importância equivalente ou ainda maior, como a legalidade e a segurança jurídica e também a preservação do patrimônio cultural e ambiental como direito fundamental da coletividade.

O que se quer e deve ser a vontade de toda a população é que se estabeleçam limites e as regras sejam respeitadas por todos para que a construção sirva ao progresso sem danificar o Bairro com características próprias.

A alegação de que a licença para construir constitui “direito adquirido” não pode se basear em um ato originariamente ilegal, na medida em que os parâmetros normativos do Dec. 20939/01 delimitam o gabarito nas ruas laterais. O direito adquirido se dá quando a concessão é feita em observância às normas legais.

Os edifícios construídos em gabarito maior no entorno, possivelmente o foram em época anterior ao Decreto Municipal. 

Se o decreto tivesse sido revogado, a pretensão até seria viável. Como não foi, torna-se inconstitucional, ilegal e fere a paz das pessoas que moram naquele lugar, transformando-o em outro bairro de espigões, sem os mais preciosos dos bens – a paisagem e a tranquilidade.

Por fim, merece relevo especial acentuar que o precedente, se aberto, dará supedâneo jurídico para que outras construtoras sigam o mesmo caminho. A beleza panorâmica, o sossego e tranquilidade darão lugar, então, à perturbação das pessoas, abalando a intimidade, privacidade e dignidade dos cidadãos moradores, atingindo fortemente os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, prejudicando toda sociedade.

Paradoxal e estranho a população acompanhar atualmente a recuperação do centro histórico do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o desfazimento da história do entorno do Jardim Botânico. 

Estes são os motivos pelos quais fui conduzido a divergir da maioria e proferir o voto vencido no sentido de dar provimento ao recurso do Ministério Público para proibir que a construção ultrapasse os 14 metros de altura (aproximadamente 4 andares)  nas ruas transversais ou laterais à Rua Jardim Botânico.

Na oportunidade, registre-se que o Ministro do STF Celso de Mello em recente artigo publicado na Revista Justiça e Cidadania, expressou as seguintes palavras: “...nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações, tal a irresistível força fecundante que pode assumir, em determinado contexto histórico, um simples voto minoritário”.

* Desembargador