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Grampos ontem, grampos hoje

Selvino Heck*

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“A NSA (Agência Nacional de Segurança) construiu uma infraestrutura que lhe permite interceptar praticamente tudo. Com esta capacidade, a imensa maioria das comunicações humanas é gravada de maneira automática e sem selecionar os alvos. Se eu quero, por exemplo, ver os seus correios eletrônicos ou saber qual o telefone da sua mulher, basta-me usar métodos de interceptação. Desta forma, posso apossar-me dos seus e-mails, das senhas, dos registros de telefone, dos números de cartões de crédito. Eu não quero viver numa sociedade que faz este tipo de coisas... Não quero viver num mundo em que é gravado tudo o que digo e faço”. As declarações são de Edward Snowden, jovem de 29 anos, empregado da Booz Allen Hamilton, empresa a serviço da NSA e da CIA, que resolveu abrir o jogo sobre a espionagem que ameaça o mundo. 

A Booz Allen Hamilton tornou-se uma das maiores e mais lucrativas empresas americanas. No ano fiscal encerrado em março, a Booz Allen, com quase 25 mil funcionários, teve faturamento de US$ 5,76 bilhões. Snowden diz mais: “Nós pirateamos todos e em qualquer lugar. Gostamos de diferenciar-nos dos demais, mas atuamos em quase todos os países do mundo. Em países com os quais não estamos em guerra. Vocês não têm ideia do que é possível fazer. A extensão das capacidades de atuação da NSA é horripilante. Podemos introduzir programas nos seus computadores e assim que um de vocês entrar na rede, identificar a sua máquina. Uma pessoa nunca está a salvo, por mais que se proteja”.

E eu que achava que grampo era coisa de ditadura. E eu que achava que já chegava de grampos na minha vida. Nos anos 1970/1980, a ditadura militar grampeava todo mundo que lutava pela democracia. Sou testemunha disso. Muitos são testemunhas disso. Busquei no Arquivo Nacional tudo que consta sobre mim. Centenas de documentos, cópias de poesias minhas, relato de reuniões, mobilizações sociais das quais participei, atividades como frei, como educador popular, como dirigente partidário, até como deputado estadual constituinte. Há registros de fatos, acontecimentos, mobilizações sociais que nem eu lembrava de ter feito ou participado. Isso, que ainda não consegui achar nada do Dops do Rio Grande do Sul, especialmente uma foto, frente e lado, e respectiva ficha, de quando fui enfiado num camburão da Brigada Militar no final de um ato estudantil na UFRGS, na Praça Argentina, e levado ao Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, 1977. Nunca tive acesso à ficha e à foto. Dizem que foi tudo queimado pelo então governador gaúcho, Amaral de Souza.

Hoje, supostos tempos de democracia, não se precisa mais disso. Quem usa celular, quem navega na internet, acessa o Google ou Facebook, tem twitter, sabe que sua vida está sendo monitorada. Sabem seu endereço, têm foto de sua casa, acompanham todas as suas mensagens, sabem quem são seus amigos, sua namorada/namorado, seus filhos, suas preferências comerciais, por onde circula diária e regularmente, tudo, tudo.

Já se sabia que isso acontecia, mas não havia provas contundentes. Agora, com as revelações deste jovem destemido e amante da democracia, Edward Snowden, tudo foi confirmado. Grampos gerais, com as bênçãos do governo americano. Tudo legal, tudo na mais perfeita ordem.  

Mas a pergunta que alguém mais despreocupado poderia fazer: o que isso tem a ver com a minha vida? E daí, se sou grampeado? Segundo Ian Brown (Monitoramento pode ter diversas implicações na vida cotidiana, Folha de São Paulo, Mundo, 11/06/13, A11), “as ferramentas de garimpagem de dados avançaram rapidamente nos últimos dez anos, e hoje é possível traçar um retrato detalhado da vida de uma pessoa mesmo a partir de poucas informações. Esse retrato pode acabar tendo consequências na vida real, como dificuldades para conseguir vistos de viagem, um emprego ou a obtenção do seguro saúde e crédito bancário. Com o processamento de grandes quantidades de dados, é possível discernir vários tipos de padrões interessantes dentro das atividades cotidianas das pessoas. Quem está falando com quem, a partir de que local, somado a dados sobre sites na internet visitados, podem ser informações tão reveladoras quanto o monitoramento do teor de telefonemas e e-mails”.

Ou seja, os grampos podem definir o que as pessoas costumam ou querem comer, as roupas que compram e vestem, quais são as vontades e interesses de crianças, adolescentes e jovens. Com as informações, define-se a propaganda, os comerciais na televisão, os rumos da novela, os filmes a serem feitos, as armas a serem fabricadas e vendidas, os brinquedos preferidos. Definem-se a vida, os desejos, os valores, até os rumos e caminhos da sociedade. E pode-se prevenir – forças de segurança, grandes conglomerados – sobre supostas ameaças, impedir ou dificultar mudanças econômicas e sociais, reprimir mobilizações sociais, etc., etc., etc.

Saída? Saídas? Não ter celular, não ter endereço eletrônico, não usar cartão bancário, ficar fora da internet. Desconfiar sempre de mensagens estranhas ou desconfiar de tudo. Não escrever ou falar nada de comprometedor, que possa ser usado no futuro, ou mesmo não falar e escrever. Ou... achar que é assim mesmo, não tem jeito, estamos ou chegamos ao mundo do Big Brother. Afinal, a vida é isso, os tempos são esses, seja o que Deus quiser. Ou ainda, lutar contra. 

Edward Snowden diz que não quer viver num mundo assim. Por isso, arriscou-se e fez a denúncia. Eu quero? Você quer? 

* Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República.