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Religião e secularização    

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Quando este artigo for publicado muito provavelmente já teremos novo papa. Mas agora o momento é de espera atenta e vigilante. Enquanto os olhos do mundo inteiro convergem para Roma, espera-se a fumaça branca que finalmente anunciará a todo o orbe quem é o sucessor de Bento XVI, que renunciou ao papado, em plena lucidez e uso de suas faculdades mentais no último dia 11 de fevereiro. 

A partir daí, todos os dias os jornais do mundo inteiro, assim como as emissoras de rádio e televisão e também a internet e as redes sociais não cessam de expressar seu pasmo diante do gesto do pontífice, assim como de refletir, discutir e especular sobre as razões que o levaram a tal extremo.  Uma vez que os cardeais eleitores foram convocados a Roma, começou outro tipo de debate: sobre as chances de alguns que seriam potenciais candidatos ao papado.  Há listas por aqui e por ali, perguntas sobre se será um europeu ou se atravessará o Atlântico e aterrissará no continente americano, se será aberto ou conservador, etc. 

Em meio a toda essa agitação o que gostaríamos de ressaltar aqui é que esse evento nos obriga a repensar nossa reflexão e, sobretudo nossas certezas sobre o processo de secularização que avança na cultura ocidental contemporânea e o papel da religião em meio a este processo. É certo que a secularização moveu o terreno sob os pés da religião institucionalizada.  Fê-la “mudar de lugar”, “deslocar-se” para um espaço outro, não mais central, mas presente na pluralidade fragmentada que compõe o cenário pós-moderno. Quando isto sucedeu muitos se apressaram a profetizar seu ocaso irremissível, seu breve desaparecimento. 

Ora, os recentes acontecimentos no Vaticano parecem colocar seriamente em questão estas afirmações. E nos obrigam a admitir que a religião enquanto instituição pode estar sendo provocada a reconfigurar-se para manter-se em comunicação com a sociedade atravessada pelo processo secularizante.  Mas a mesma religião como relação com a transcendência, no entanto, não foi banida do horizonte humano como os “mestres da suspeita”  (Freud, Marx e Nietzsche) profetizaram. E os mesmos pensadores modernos, que tanto criticaram os elementos supersticiosos e mágicos do cristianismo, são agora chamados a reconhecer a força da transcendência como elemento constitutivo da humanidade.  

Senão como explicar que as atenções da mídia estejam constantemente voltadas para o Vaticano, esperando a fumaça branca como sinal de que o trono de Pedro não se encontra vazio?  Como entender que a renúncia e a despedida do tímido intelectual Bento XVI para uma vida de retiro, estudo e oração haja sido cercada de tanta presença de fiéis, manifestações de afeto, participação de todos os níveis e formas?  Por que, já que a religião não importa nada ou quase nada no mundo de hoje, essa comoção que tomou conta da sociedade diante do pontífice vestido de branco que se retirava para dar lugar a outro que deveria ser escolhido pelo colégio de cardeais? 

Pode-se, é certo, argumentar que o que atrai a mídia são os recentes escândalos em que esteve envolvida a Cúria Romana: a pedofilia, o Vatileaks e os problemas financeiros com o Banco do Vaticano.  Sabemos que certa mídia não resiste a certo sensacionalismo, sobretudo quando este se dá em torno da Igreja Católica. Sabemos igualmente que é parte intrínseca da missão do comunicador buscar e apurar a verdade dos fatos e informá-la aos leitores e espectadores.  

Mas convenhamos que reduzir o que estamos assistindo nos últimos dias a isto é certo reducionismo de visão e de fôlego.  O fenômeno é grande demais, surpreendente demais para não reconhecer honestamente que provoca um giro copernicano em nossos estereótipos e nosso foco estereotipado para ver as coisas. Se for verdade que a secularização é real e não há caminho de volta a uma pré-modernidade que pertence ao passado histórico, é igualmente verdade que a força do símbolo ainda é grande no imaginário das pessoas. 

O papa vestido de branco que exerce uma atração irresistível sobre tantas pessoas no mundo inteiro, que podem ou não estar de acordo com sua linha de pensamento e seu jeito de dirigir-se às massas está aí para lembrar-nos que o Transcendente ainda se encontra muito presente na realidade e na vida humana.  Se não como convicção de fé, ao menos como desejo.  Ou saudade. 

Em um mundo cansado de receber notícias sobre guerras, tragédias, violência e corrupção, a eleição de um papa desperta enorme interesse e polariza os olhares do mundo inteiro. Continuemos contemplando a chaminé da Capela Sistina, esperando a fumaça branca que nos dirá que temos papa.  Certamente isto, se não confirmar uma fé que às vezes fraqueja, certamente nos fará mais humanos. 

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do  Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e 'Crônicas de cá e de lá' (Ed. Subiaco), que  pode ser  encomendado diretamente à escritora pelo e-mail –  [email protected]