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A renúncia de Bento XVI: um precedente evangélico

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Eram oito horas da manhã quando o telefone tocou.  Em pleno Carnaval, descansando fora do Rio, eu dormia até mais tarde.  A voz vinha de longe, e lentamente ativava as sinapses de meu cérebro.  Quando escutei “a renúncia do papa de Bento XVI ao cargo”, o choque de adrenalina me fez acordar de vez. Pedi um tempo para me inteirar da situação.  E fui verificar.  Era verdade. 

Em meio às plumas e paetês das escolas de samba, a notícia da renúncia do papa começou a ganhar volume e espaço.  E a assombrar a todos!  Nunca antes...jamais se viu...como pode ser...por quê?  Lembrei-me de outras ocasiões, quando minha mãe me avisou: “O papa morreu”. E eu lhe disse que se enganava por pensar que se referia a Paulo VI.  E era João Paulo I, o papa Sorriso.  Ali também havia a surpresa e o sabor do inesperado.  Ali também experimentávamos perplexidade. 

Bento XVI não morreu.  E isto faz toda a diferença.  Foi um papa lúcido e em plena posse de suas faculdades mentais que anunciou na Praça São Pedro sua decisão inabalável de renunciar ao cargo de bispo de Roma e de sucessor de Pedro.  Marcou data e prazo: 28 de fevereiro.  Agradeceu a todos que o ajudaram em seus quase oito anos de papado, pediu perdão pelos erros e...entregou a Igreja nas mãos de seu Supremo e Único Pastor, Jesus Cristo, assim como ao cuidado maternal de sua mãe Maria. 

Surpresa como todos diante do inesperado gesto de Bento XVI, aos poucos fui sentindo o peso e a importância desta decisão e deste anúncio.  Parece-me de uma grandeza impressionante, de uma coragem enorme e de uma inspiração evangélica. Nunca durante este pontificado senti tão presentes o sopro e o impulso do Espírito como neste anúncio dado na Praça de São Pedro no último dia 11 de fevereiro. 

A decisão livre e minuciosamente refletida e pensada de Bento XVI pode ter um enorme significado para a Igreja.  Porque se o papa pode deixar seu cargo por motivos de idade, por sentir que lhe faltam as forças e o vigor físicos para exercer como deveria a posição que ocupa, a mesma interpelação se abre para outros segmentos eclesiais.  Por que não teriam de fazer o mesmo os superiores das ordens e congregações religiosas masculinas e femininas? Por que se eternizam em cargos de chefia tantos coordenadores de movimentos leigos que não se mostram dispostos a dar um passo para liberar o caminho aos mais jovens? 

Antes do papa, a Igreja havia já assistido à renúncia do superior geral dos jesuítas, o holandês Peter Hans Kolvenbach.  Depois de 25 anos à frente da Companhia de Jesus, a ordem mais forte da Igreja, padre Kolvenbach apresentou sua renúncia.  Já vinha tentando fazê-lo desde o pontificado de João Paulo II, que nunca a aceitou.  No entanto, depositou-a nas mãos do papa Ratzinger, que entendeu perfeitamente seu desejo e sua decisão. 

O “Papa Negro” – como é chamado o geral dos jesuítas – ao renunciar prenunciava esta outra renúncia, a do papa sucessor de Pedro. Em ambos a mesma atitude de fundo: liberdade interior e desapego do poder.  Sair porque vê conscientemente seus limites.  Afastar-se do cargo porque reconhece humildemente não ter condições objetivas de exercê-lo. Deixar o poder que lhe foi outorgado pelo colégio cardinalício e reconhecido por toda a Igreja nas mãos desse mesmo colégio para que escolha um sucessor.  

No dia 28 de fevereiro, Bento XVI se retirará à sede de Castelgandolfo, no sul de Roma, e deixará o governo após quase oito anos de papado.  Depois de eleito seu sucessor, viverá na cidade do Vaticano, dedicando-se àquilo que ama fazer: ao estudo, à escrita, à oração. 

Com sua atitude nitidamente na contramão da lógica do poder, Bento XVI abre o caminho a uma reformulação do papado, que já deveria há muito ter sido feita na Igreja Católica.  Seu sucessor, seja ele quem for, encontrará esse precedente aberto, e isso certamente deverá impactar em seu comportamento, em seu estilo de governar e na compreensão que terá de seu cargo e ministério. 

Com seu gesto extremamente humilde e realista, Bento XVI deixa a autoridade que lhe foi conferida como papa, mas permanece investido de outra autoridade, mais evangélica, mais inspirada e inspiradora, mais perene: a autoridade do testemunho. Foi um confessor – como os do cristianismo primevo – aquele que, fragilizado pela idade e pelo cansaço, com a voz tênue e quase inaudível, reconheceu seus limites e abdicou do poder que detinha.  Assim entrava na esfera daquela humildade que deve ser mais forte e presente ainda nos que detêm cargos de mando, tal como ensinou o Mestre Jesus de Nazaré. 

Se faltasse ainda algo para convencer-nos da beleza do acontecimento que ungiu a Igreja inteira com a renúncia do papa, talvez fosse importante prestar atenção ao respeito atento e admirativo que esta despertou naqueles que mais divergiam de suas ideias e de seu magistério.  O teólogo brasileiro Leonardo Boff, por exemplo, declarou que a atitude de Bento XVI merece toda admiração e respeito. Assim também o teólogo suíço Hans Küng, com quem Ratzinger teve alguns embates bem conhecidos: "A decisão de Bento XVI merece grande respeito, é legítima, compreensível e também corajosa. Nunca esperei que este papa conseguisse me surpreender, algum dia, de maneira tão positiva". 

A nós, que somos espectadores e testemunhas deste evento histórico-teologal, que a atitude do papa nos inspire e ilumine nesta Quaresma, que agora começamos. 

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e de 'Crônicas de cá e de lá' (Ed. Subiaoo), que podem ser encomendados diretamente à escritora. – [email protected]