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Entre a Epifania e a diafania

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No dia 6 de janeiro, a Igreja Católica celebrou a festa da Epifania.  A passagem evangélica que marca a festa é a visita dos Reis Magos ao menino Jesus recém-nascido.  Seguem uma estrela que vem do Oriente e oferecem presentes: ouro, incenso e mirra.  

Em minha infância recordo-me que ouvia deslumbrada minha avó narrar esta história. Ela a enriquecia de detalhes, que depois descobri não se encontrarem na Bíblia como, por exemplo, os nomes dos magos: Gaspar, Melchior e Baltasar. Depois, o estudo da teologia foi me permitindo penetrar mais fundo no significado tão belo desta festa, chamada da Epifania.

Epifania significa aparição, manifestação, e vem do grego epiphanéia. Epifania também pode ser conceituada no sentido filosófico. Neste caso, significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas, tudo que pode estar no âmago das coisas ou das pessoas, isto é, poder considerar que a partir de agora se sente que aconteceu uma iluminação mais decisiva, que permite sentir  como claro, nítido, pleno, algo que não se distinguia bem e que parecia mesmo difícil de conseguir compreender. 

Epifania pode dizer-se igualmente de um pensamento iluminado, uma inspiração que parece vir de Deus, pois somente ele seria capaz de  revelar algo semelhante. O ser humano recebe esta iluminação, este insight que percebe não vir de si próprio e se traduz em um conhecimento por conaturalidade, um pensamento único e indescritível 

Na literatura, epifania  é uma forma de mostrar uma ideia, uma característica de algum personagem ou circunstância,  algo que o escritor quer que o leitor veja e compreenda, e que vai além das palavras e imagens do Autor. É tornar legível aquilo que só o autor compreende, e quer que todos vejam .  É o caso, por exemplo, de Clarice Lispector. Na estrutura de boa parte de seus contos e romances vemos uma personagem protagonista que vive numa suposta harmonia até que um evento aparentemente cotidiano lhe causa certo incômodo e lhe chama a atenção. A partir daí, o leitor é convidado a participar de uma espécie de caos emocional em que a personagem é submersa. Este pequeno evento típico do dia a dia causa na protagonista um incômodo seguido de reflexão.  Aí estaria a epifania. Depois desse clímax epifânico, a personagem volta ao seu equilíbrio – mas nunca àquele equilíbrio anterior; agora é um novo tempo, a partir do aprendizado conseguido em seu momento caótico detonado por um acontecimento fora do comum. 

A epifania pode igualmente significar os estados místicos, de possessão por parte da divindade, de iluminação única e original. Muitos religiosos, filósofos, místicos, escritores, cientistas confirmam, por meio de relatos históricos, que passaram por algumas experiências epifânicas, tais como Buda, Moisés, Maomé, James Joyce, Einstein entre outros. 

No sentido religioso, no calendário litúrgico da Igreja Católica, significa manifestação divina. No caso a que nos referimos, trata-se da manifestação e apresentação de Jesus Cristo ao mundo, através da chegada dos Reis Magos trazendo seus presentes. São estrangeiros, de outras latitudes e povos, que não são membros do povo eleito e chegam para homenagear o Menino.  O Evangelho deseja assim sublinhar a universalidade do evento Cristo, que vem não só para Israel mas para toda a humanidade.  

A Epifania do Senhor é uma festa religiosa do catolicismo, comemorada dois domingos após o Natal. Além da visita dos magos, há outros dois eventos com características epifânicas: a Epifania por ocasião do batismo que João Batista realiza em Jesus no Rio Jordão; e a ocasião em que Jesus se torna conhecido como Messias/Cristo, por ocasião do milagre das festas de bodas de Caná. Com isso, o Novo Testamento quer significar que a vida cristã, no seguimento de Jesus, está a todo o momento divinamente “ameaçada” pelo extraordinário dentro da trama ordinária da vida cotidiana. 

Neste sentido, a vida de fé é um entrelaçamento da epifania com a diafania.  Por um lado, existem marcos inesquecíveis em nossa vida de todos os dias que nos fazem dar saltos qualitativos em termos de conhecimento interior e abertura ao mistério. Por outro, na medida em que caminhamos e amadurecemos, vamos percebendo que toda a realidade está permeada por essa luz que sentimos poderosamente em determinados instantes.  Essa transparência e luminosidade fundamental e global é o que se denomina diafania.

O desafio maior é saber captar a presença de Deus em toda parte. Para isso é necessária uma educação do olhar, de forma a vislumbrar a diafania de Deus, sua “universal transparência” na criação e na história. O ser humano, como diz Teilhard de Chardin, já está sempre inserido no Meio Divino. O que é necessário é dar-se conta disso, abrir os olhos para perceber essa sua imersão permanente no Mistério. 

Tomara que neste ano de 2013 os Magos nos tragam este presente: saber estar abertos humildemente para as Epifanias que possam acontecer em nossas vidas.  Mas ao mesmo tempo exercitar-nos e buscar a diafania que se encontra permanentemente oferecida a nossos sentidos pelo simples fato de estarmos vivos. 

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do   Departamento de Teologia da  PUC-Rio, é autora de 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e de 'A argila e o espírito - Ensaios sobre ética, mística e poética' (Ed. Garamond), entre outros livros. -  [email protected] https://agape.usuarios.rdc.puc-rio.br