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Dois nomes para o amor

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Divindade grega que carrega o nome de uma função psicológica, Eros significa o desejo amoroso. Ocupa um lugar importante no pensamento religioso, na vida social, assim como na arte e na literatura dos gregos.  Nas cosmogonias órficas que narram a emergência do mundo, Eros é uma potência primordial que não tem pai nem mãe. É de certa maneira o Um que, na origem de todas as coisas, integra e unifica os princípios opostos, como o feminino e o masculino, o uno e o múltiplo.  

Na mística ocidental, tal como na psicologia e em outras ciências laicas, Eros foi entendido ora como o desejo amoroso, força organizadora da vida coletiva, ora como figura central da sociedade, intimamente ligada à educação aristocrática, ao ginásio e à palestra, ora uma potência inquietante, que quebra os membros, perturba a razão, paralisa a vontade, ora um deus malicioso que se compraz no jogo do amor, imiscuindo-se na vida das mulheres no gineceu, enredando as intrigas amorosas ou desenredando-as. No campo da teologia, pelo menos na corrente que predominou no universo cultural do Ocidente, a concepção de Eros como força perturbadora, ligada apenas ao sexo entendido genitalmente predominou.  

Contribui para isso, certamente, o outro nome dado ao mesmo amor que o cristianismo, notadamente o Novo Testamento, cunhou como a nomeação de Deus por excelência: ágape. O vocábulo grego ágape significa afeição, amor, ternura, dedicação.  Seu equivalente latino é caritas, traduzido nas línguas latinas por caridade (charité, caridad, carità) e mesmo nas anglo-saxônicas (charity). 

Isso tanto em textos estoicos como cristãos. A força de ágape no texto cristão reside sobretudo no fato de ao longo de todo o NT não aparecer a palavra Eros. Aparece philia para designar o amor sobretudo feito de amizade.  Mas, ao se tratar do Deus, de Jesus e do amor que devem viver seus discípulos, é ágape que predomina soberanamente.  O mesmo ocorre para descrever e exortar os discípulos a imitar e seguir Jesus, e serem imitadores de Deus, que é misericordioso e não faz acepção de pessoas. Geralmente, a língua profana emprega ágape para designar um amor familiar, distinto do amor paixão ou do desejo amoroso, que pertenceria à esfera do Eros, traduzido em latim por Cupido, nome afim com cupiditas, que significa o desejo, a inveja, a cobiça e uma série de paixões não bem ordenadas.  

Porém, é fato que, embora Eros convenha mais ao amor dos amantes, inflamado, não é inusual vê-lo presente no cristianismo antigo para designar não o erotismo sexual e sentimental mas o fervor místico. Neste sentido, o padre capadócio Gregório de Nissa, no século IV,  prefere Eros a ágape, que lhe parece por demais tranquilo para descrever os estados de alma místicos.  E define Eros como uma ágape mais intensa. Na verdade, o conceito de ágape recebe uma promoção repentina e intensa quando o NT, sobretudo alguns autores, notadamente Paulo e João, o adotam e o fazem sinônimo do amor cristão. Neste contexto, ágape significa tanto o amor condescendente e gratuito de Deus pelos seres humanos quanto o amor incondicionado, o devotamento absoluto que os cristãos são chamados a ter pelo próximo, seja ele quem for, mesmo o inimigo. 

Filhos do mesmo Pai, são todos irmãos e portanto o próximo não é somente o que está perto de mim mas o forasteiro, o desconhecido, o estrangeiro, o escravo, o inimigo. Os textos maiores que celebram a ágape cristã são o hino ao amor da primeira carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 13, e toda a primeira Epístola de João. Portanto, se quisermos aqui definir como se situam Eros e ágape dentro do marco do cristianismo – e, portanto, da teologia cristã – poderíamos encontrar alguns pontos que aparecem nos textos paulino e joanino.  

Neles, o específico do amor agápico é seu caráter não provocado ou estimulado.  Trata-se de um amor gratuito, independente do valor de seu objeto, desinteressado.  Ágape é, pois, o primeiro exemplo de um amor sem apropriação nem cupidez, um amor que nada tem de egocêntrico.  A fim de amar alguém  agapicamente, não se espera que ele se torne amável ou que nos compraza.  Deve-se amá-lo sem condição prévia.  E porque se ama assim, cria-se uma abertura em direção a ele ou ela, abertura de certa maneira “pascal”.  Abre-se uma “passagem” em direção ao outro ou outra, dá-se um esquecimento de si no outro.  

Essas são as verdadeiras nuances do amor cristão, considerado o “puro amor”. Em mais de vinte séculos de cristianismo, parece que a teologia e a mística cristãs não resolveram de maneira integradora e satisfatória seu problema com a integração do Eros com a ágape.  Certa tradição cristã tem se caracterizado por colocar sob suspeita aquilo que diz respeito ao Eros. Ligado ao mundo das paixões e dos desejos transgressores e proibidos, vai na direção inversa da que leva ao amor de Deus, este sim, puro e elevado, que dignifica o ser humano e o faz merecedor da salvação eterna. O que, no entanto, parece que hoje se impõe como prioridade à teologia cristã é conseguir ultrapassar a dicotomia que se instaurou entre Eros e ágape, aliando um com o mal e o outro com o bem.  

Igualmente primordial é dissociar Eros de uma conotação meramente sexual num sentido genital, aliando-o portanto ao pecado e à transgressão do verdadeiro amor que estaria contido apenas na ágape.  Eros e ágape se complementam e interagem mutuamente em fecunda tensão quando se trata do verdadeiro amor. Procurar sufocar o Eros só enfraquecerá e empobrecerá o amor e enrijecerá ágape, o que não é bom para ninguém. 


* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de ‘Simone Weil – A força e a fraqueza do amor’ (Ed. Rocco). -  [email protected]