ASSINE
search button

O manuscrito da discórdia 

Compartilhar

Nos obscuros bastidores de Brasília, ouviu-se que a até então apedrejada Ana de Hollanda, oportunamente, precipitou-se ao escrever para a responsável pelo Planejamento do governo Dilma Rousseff, a poderosa Miriam Belchior, exigindo mais verbas para o ministério da Cultura. À boca miúda, dizia-se que a filha de Sérgio Buarque de Hollanda, embora descendesse de um dos ideólogos da fundação do Partido dos Trabalhadores, em sua infância política não aprendera com a lição de moral aplicada ao Cristovam Buarque, que fora demitido por telefone pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao reivindicar recursos financeiros em demasia para o enjeitado e maltrapilho Ministério da Educação. 

Descobriu-se que, em correspondência divulgada pelo jornal O Globo, a gestora das artes tupiniquins criticara com veemência de avarento o ínfimo orçamento governamental destinado à sua pasta, olvidando-se de que no PT é proibido reclamar por escassez de investimentos pecuniários, sobretudo quando se tratar de saúde, educação e cultura. Ao que parece, a polêmica irmã do compositor que inspirou o título da crônica não compreendera que a cúpula petista se pauta pela obrigatoriedade de um silêncio forjado a qualquer preço, mesmo quando a súplica da ex-ministra visava a proteger o conjunto arquitetônico composto pelo Museu da República, pelo Museu do Folclore e pelo Palácio Gustavo Capanema.  

A ausência de sensibilidade dos mandatários da nação sequer permitiria observar que a tal sensatez da reivindicação da ex-ministra se equilibrava tão somente por uma coerente e lógica preocupação com o patrimônio cultural representado por obras raríssimas e documentos impressos no período que, por vezes, se antecedem ao registro da colonização desta Ilha de Vera Cruz. É preciso atentar para o fato de que as exigências desta burguesa autista se debruçavam por sobre a preservação de manuscritos históricos provindos das caravelas de dom João VI, adquiridos por boas patacas de ouro junto a Portugal e hoje pertencentes ao espólio da Fundação Biblioteca Nacional. 

Todavia, neste “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”, conforme nos descreveu o poeta tijucano, há séculos se reproduz o escambo de uma hereditariedade repugnante e imoral, de cujas falcatruas se tecem as horrendas discrepâncias sociais que, decerto, aviltam e maculam o orgulho de ser brasileiro. Em verdade, a incauta população deveria se dar conta de que, ao substituir a legítima herdeira dos Buarque de Hollanda pela arrogância congênita da matriarca do clã Suplicy, para muito além de permuta da tradição de um sobrenome ou legado político, se põe em prática, com absoluta falta de originalidade, um estelionato cívico e intelectual, que se faz necessário para impulsionar a campanha à prefeitura de São Paulo. 

Pode se afirmar que, entre a reclamação por escrito de Ana de Hollanda e a eleição de Fernando Haddad, que, por sinal, não custa lembrar, substituiria Cristovam Buarque no Ministério da Educação na ocasião do malfadado telefone demissionário, se interpõe um habitual tirocínio de se tratar a cultura desta pátria de pés e mentes descalços, como reles e vulgar mercadoria para qualquer eventualidade de precisão programática ou partidária.  É preciso dizer que os inúmeros imbróglios subsidiados por patrulhas ideológicas acerca dos direitos autorais e dos simbólicos Pontos de Cultura não foram páreo para a derrocada do prestígio da ex-ministra Ana de Hollanda junto ao Planalto e ao primeiro escalão da excelentíssima general de saias vermelhas, que dita ordens como quem decreta um ato inconstitucional. 

É inadmissível que a nação não se pronuncie contra a barbárie instaurada para impor uma indústria de ignorância sob os auspícios das oligarquias traduzidas pelas emissoras de rádio e televisão, com o intuito de aniquilar o discernimento de um povo condenado a aplaudir as peripécias conjugais de uma vilã de telenovela, por lhe ter sido negado o livre-arbítrio de optar por um livro, por uma peça de teatro ou filme de cinema.  É triste constatar que o semear de destruição das consciências iniciado no período ditatorial capitaneado pelos militares vem a dar seus frutos no destrambelho de uma contemporaneidade governada pelos guerrilheiros marxistas de outrora, que se beneficiam desta execrável e maligna colheita de grãos de ideias tolhidas e mutiladas pela ganância de poder de um partido político, a dar adeus à utopia de transformação pela cultura da dialética e do livre pensamento.   

Enfim, para não dizer que não falei das flores, eis que a ex-ministra Ana de Hollanda, ao despedir-se, ainda ouviu uma desdenhosa Dilma Rousseff, distraidamente, a cantarolar, parodiando Chico Buarque: “Você não gosta de mim, mas o seu irmão gosta...”.

* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.