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Nem sacrifícios nem oblações: deste-me um corpo 

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Nas sociedades ocidentais, pensa-se normalmente que o corpo humano é um objeto relevante apenas para as áreas do saber da biologia ou da fisiologia, por exemplo, e que sua realidade material deve ser pensada de maneira independente das representações sociais ou da preocupação das ciências humanas. Por causa da longa tradição filosófico-religiosa da separação da alma e do corpo, este último afastou-se do campo do conhecimento objetivo, enquanto a apreensão do psiquismo estaria submetida à flutuação das representações. 

Ora, os trabalhos antropológicos, assim como os filosóficos e teológicos, apresentam uma extrema variedade de concepções do corpo segundo as diferentes sociedades, de seu tratamento social, sua relação com o outro e com o mundo.   

A teologia encontrará na Bíblia as orientações que ensinarão como se deve entender o corpo e regular a relação com ele. Os  livros do Primeiro Testamento nos colocam diante da visão semita, que compreende o ser humano como corpo animado pelo espírito de Deus, mas também percebe esta corporeidade existencial conspurcada pelas muitas situações de conflito e violência que perpassam a história da humanidade, que não é outra senão a mesma história da salvação.  

Assim, nestes textos, criação, bondade, fecundidade, cuidado e bênção se misturam com atração pelo sexo oposto, que é gozo e realização ao mesmo tempo que desvio, deturpação, excesso, ciúme, maldição, traição etc, que resultam em violência, com assassinato, coerção,  segregação, mentira, desrespeito. Ao olhar para o Novo Testamento, percebemos que a experiência e a reflexão teológica no cristianismo são experiência e reflexão teológica sobre um Deus encarnado.  

Fora deste dado central e absolutamente necessário, não há cristianismo. Não havendo encarnação, não há a possibilidade de Deus assumir todas as coisas por dentro e viver a história passo a passo, por assim dizer “na contramão” de sua eternidade.  Não havendo encarnação, não há cruz, não há redenção, não há salvação. Não há, portanto, aliança entre a carne e o Espírito.

Confessar com a boca e o coração que o Verbo se fez carne e o Espírito foi derramado sobre toda carne implica buscar a experiência e a união com o Deus que assim determina comunicar-se com a humanidade através desta carne na qual é possível experimentá-lo. Desde aí somente é possível começar a reflexão sobre a corporeidade humana sexuada e pensar igualmente sua conflitiva interlocução com a violência.   

O corpo humano está no centro da revelação cristã, no momento em que se trata de algo que foi assumido pelo próprio Deus, na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo.  A Encarnação do Verbo, que toma corpo humano e habita entre nós, embora carregue consigo uma forte dimensão kenótica e humilhante, de acordo com as palavras do hino da Carta aos Filipenses, por outro lado eleva e engrandece a corporeidade humana, resgatando-a de uma vez para sempre, pois a divindade a abraça por dentro.  

Com a vinda do Espírito Santo, a corporeidade humana redescobre novas dimensões de si própria, que vêm completar a revelação que Jesus Cristo dela faz.  Percebendo-se semelhantes a Jesus de Nazaré encarnado, vivo e morto, os discípulos da comunidade cristã primeva percebem-se igualmente destinados a uma ressurreição semelhante à sua, onde o corpo humano, semeado corruptível, ressuscitará incorruptível.  

O Espírito na Bíblia, porém, está sempre estreitamente vinculado ao corpo.  Não se trata de uma força etérea que leve o ser humano a ultrapassar a barreira do tempo, do espaço e, sobretudo, da corporeidade e da espessura do real. O Espírito tende para o corpo: esta é a realidade revelada através dos textos do Primeiro Testamento, quando o Espírito de Deus cria mundos a partir do nada, transforma desertos em jardim, ossos secos em militante exército e engravida ventres estéreis.   

Nessa vinda de Deus ao nosso encontro, o Espírito entra na violência do mundo, das parcialidades, das relações conflitivas e entrecortadas, das intempéries, das catástrofes, das carências de sentido. Habitando na corporeidade humana, o Espírito faz do ser humano seu templo, sua morada. O cristianismo traz, entre as grandes novidades que introduz na história da humanidade, o fato de o eixo do Sagrado ser deslocado do Templo, lugar de culto e de oração tradicional, para o ser humano, para a corporeidade humana, para a carne.  Portanto, não é necessário multiplicar ritos e sacrifícios para agradar ao Senhor. Basta o nosso corpo, onde ele habita, oferecido e disponível para o projeto de seu Reino. 


* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de ‘Simone Weil – A força e a fraqueza do amor (Ed. Rocco). -[email protected]