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A universidade moderna e seu caráter dual

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Sob o influxo da Revolução Industrial a universidade sofreu grande mudança. Da velha universidade, guardou a vocação para votar-se, precipuamente, ao saber enquanto tal. Da sociedade moderna incorporou a preocupação com o meio no qual está imersa. Assim, passou a dedicar-se ao desenvolvimento de novas técnicas de produção e à formação de pessoal especializado demandado pelo mercado de trabalho.

Embora a enriqueça, a incorporação de temas afetos à vida imediata pode acarretar dúvidas observáveis tanto na comunidade universitária como no seu relacionamento com a sociedade inclusiva. Tais desencontros decorrem de se enfatizar, apenas, uma face de seu caráter dual: uns a tomando como voltada, tão só, ao saber pelo saber; outros vendo-a como mero apêndice do mercado. Ademais, visões desequilibradas sobre o papel da universidade podem gerar posturas desarrazoadas sobre questões referentes à sua gratuidade ou não, ao seu financiamento e fiscalização e às formas de acesso ao seu quadro discente.

Contemplemos, por exemplo, os objetivos perseguidos por distintos segmentos do corpo discente.

Os alunos de uma faculdade personificam, genericamente, cada uma das duas vertentes aludidas acima. Muitos formam-se para engajar-se na atividade cotidiana desenvolvida por empresas, pelo Estado ou pelos demais organismos necessitados dos préstimos de especialistas. Enfim, têm em mira seus futuros rendimentos. Uma parcela menor do alunato procura na faculdade o caminho para a carreira acadêmica propiciada pela pós-graduação. Embora estes dois tipos ideais não sejam únicos nem excludentes – muitos dos interessados em auferir rendimentos no mercado buscam cursos de pós-graduação a fim de valorizar sua força de trabalho – podem eles sugerir respostas às questões postas aos que se ocupam da vida universitária. Se não, vejamos.

Consideremos o currículo dos cursos de graduação. Não é difícil concluir, em face do exposto, que a estrutura curricular deve abranger tanto as disciplinas capazes de cobrir os problemas colocados no dia a dia aos profissionais engajados em empresas ou em serviços públicos como aquelas votadas às questões teóricas de fundo. Ademais, o conteúdo de cada disciplina também deve agasalhar esta bipartição: o compromisso com a formação para o enfrentamento das tarefas práticas do dia a dia e a perspectiva teórica de alcance mais largo. Mesmo nos cursos de pós-graduação deve haver preocupação com os problemas atinentes aos profissionais não dedicados exclusivamente à vida acadêmica ou às atividades de pesquisa.

Tomemos agora um tema sempre presente nas discussões sobre a universidade pública: deve ela ser paga, ou oferecida graciosamente? Em face da opinião por nós esposada, parece razoável exigir-se pagamento quanto aos cursos de extensão universitária, a assim chamada pós-graduação lato sensu, bem como quanto aos de graduação. Quanto a esta última modalidade, é plenamente aceitável a ideia de oferecer bolsas à parcela do alunato mais aplicada, pois, como sabemos, promover e recompensar a excelência são metas básicas do ensino. 

Já os cursos de pós-graduação, em todas suas modalidades stricto sensu (mestrado, doutorado etc), teriam de ser ministrados gratuitamente. Além disso, se exigida dedicação exclusiva, deveriam os alunos receber bolsas capazes de garantir-lhes o sustento. Lembre-se aqui que os pós-graduandos interessados em valorizar sua força de trabalho de sorte a alcançarem uma colocação melhor no mercado de trabalho não deixariam para o coletivo suas dissertações, teses e pesquisas, mas também viriam a contribuir para o todo social quando, já engajados na vida econômica, viessem a promover melhoras nos serviços públicos ou introduzir inovações técnicas nas atividades produtivas.

Quanto ao controle e avaliação de suas atividades, a universidade necessita estar protegida de qualquer ingerência externa. Destarte, o controle deve ser exercido pelos mecanismos internos da própria universidade e por órgãos do Ministério da Educação especialmente constituídos para tanto. Já no que tange ao aconselhamento e à crítica, deve a universidade abrir-se amplamente à sociedade na qual está inserida. Neste sentido, sempre serão bem-vindos os órgãos formais e informais aptos a transmitir ao corpo universitário os anseios, necessidades, opiniões críticas e cobranças do corpo social que a alberga.

Frisemos ser a busca e a transmissão do saber função primacial da universidade. Esta vocação universal, com a qual se confunde o privilegiamento da excelência, faz com que a universidade não possa sofrer, com respeito a seus métodos, metas e linhas de pesquisa, desde que legais, a menor restrição — tem ela, pois, de estar resguardada, em termos absolutos, de qualquer limitação ou ingerência externa.

Tenha-se presente, por fim, que o estabelecimento de cotas de ingresso – por mais generosa que possa parecer a política de cotas para minorias – fere frontalmente a posição acima explicitada, pois representa uma limitação indevida e inaceitável ao próprio espírito da universidade. Igualmente condenável mostra-se a medida adotada pelo Ministério da Educação segundo a qual compram-se, mediante isenção fiscal, vagas ociosas existentes em escolas particulares. A assim chamada Universidade para Todos representa desvio de recursos públicos em favor de interesses privados e implica, por fugir ao critério da competência,  abastardar a própria ideia de universidade. Por seu turno, a recente aprovação de lei que garante a cota de cinquenta por cento nas universidades e nas escolas técnicas federais para estudantes egressos do ensino médio público representa mais um golpe perverso no espírito que deveria prevalecer quanto ao tratamento emprestado às universidades — lei esta, infelizmente, sancionada pela presidente da República. 

 

* Iraci del Nero da Costa é professor livre-docente aposentado da USP. - [email protected]