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Nenhuma piedade 

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Philippe e Driss  não têm aparentemente nada em comum.  Um é branco, outro negro; um é rico, outro pobre; um vive em uma mansão com coleções de raros objetos de arte; outro, em um bairro da periferia de Paris, dividindo quarto e banheiro com oito primos e irmãos. Um ficou tetraplégico, após um grave acidente de parapente que lhe destruiu as cervicais.  Outro é um monumento à saúde: alto, atlético e forte.

Cada um lida com sua exclusão – deficiente físico e dependente do cuidado alheio um; afrodescendente e discriminado em um país branco outro – até que o destino faz com que seus caminhos se cruzem.  E começa então para ambos uma jornada em direção ao resgate da própria dignidade como ser humano.  A mediação para isso será um trabalho remunerado que evoluirá no sentido de uma profunda e bela amizade. 

O filme de Olivier Nakache e Eric Toledano teve na França sucesso estrondoso de bilheteria.  Fala aos sentimentos e provoca as consciências que diante do drama dos dois personagens transformado em inteligente e fina comédia pelos realizadores penetra facilmente no gosto refinado e culto da plateia francesa. Com excelentes atores, é um inegável sucesso e pode ser que repita este ano no tapete vermelho de Hollywood o sucesso do belo The artist, do ano passado. 

No entanto, não é tanto por aí que o filme – que acaba de estrear no Brasil –  me tocou uma fibra profunda da sensibilidade.  O ponto álgido da trama parece-me ser o diálogo de Philippe com um amigo da família, quando este o interpela sobre o fato de haver contratado como cuidador pessoal alguém como Driss.  O amigo – que como outros parentes e conhecidos – roda perto de Philippe de olho em uma possível herança escandaliza-se com a atitude de Driss, desassombrada e autêntica, radicalmente diferente de outros acompanhantes, que mantêm prudente distância do paciente de que cuidam.  E lhe pergunta como é possível que Philippe continue admitindo em sua casa e em sua intimidade alguém tão perigoso e sem nenhuma piedade.

A resposta que vem segura e cortante de dentro da cadeira de rodas onde Philippe sente, deseja e vive intensamente apesar de sua limitação física é de uma profundidade impactante: “É isso mesmo que eu quero.  Nenhuma piedade”. Diante dos olhos do amigo perplexo, Philippe expõe sua exigente angústia, clamando por ser tratado como pessoa e sujeito, com desejo e liberdade, e não como um objeto de que se deve cuidar mas com o qual não se estabelecem relações. 

Totalmente heterodoxo em seus métodos de cuidar do paciente que lhe é confiado, Driss cria situações verdadeiramente perigosas, nas quais tudo pode acontecer. Mas são justamente essas situações que vão trazendo Philippe de volta a uma plenitude de vida perdida pelo caminho.  Como quando parte dirigindo o carro de Philippe com este a bordo em alta velocidade, sendo parado pela polícia e driblando a mesma com a ajuda do companheiro.  Ou quando concorda em acompanhar Philippe para saltar de parapente, apesar do medo, e partilha com ele a deliciosa e vertiginosa sensação de voar sobre o mundo.  Ou quando indaga do amigo como e por onde, em seu corpo quase totalmente paralisado, acontece o prazer, levando Philippe à confissão de onde residem suas zonas erógenas. 

Nenhuma piedade atravessa a interlocução do senegalês Driss e do tetraplégico Philippe, porque entre eles reina uma relação honesta e transparente.  Trata-se de duas pessoas que desejam viver e se empenham em desfrutar juntos dessa graça e desse dom, dos quais se recusam a abdicar. O filme se desenrola em coerência com esse dinamismo vital que cresce até um ponto álgido e uma solução “improvável”, que no entanto se torna não somente possível como real. 

A piedade e a comiseração humilham aquele que se encontra em uma situação limitante, diminuído pela doença ou pela marginalidade social.  Não o ajuda no caminho da superação de seu limite o olhar condoído, que não é compassivo.  Que sente pena, mas não compartilha essa pena, não com-padece, não sofre com.  O ser humano nunca é digno de pena, pois sempre tem viva em seu interior a centelha divina que o faz à semelhança do Criador.  

E em uma relação franca e aberta, a chama que poderia estar bruxuleante e algo apagada ganha novo impulso e volta a brilhar.  Assim é a história da amizade entre Philippe e Driss, que esse belo filme narra.  Assim pode e deve ser a história de qualquer amizade verdadeira.  O olhar amigo não diminui o outro pela piedade, mas o desafia a superar qualquer situação pela solidariedade alegre e criativa.  


* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco).