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Aurora mergulhada em trevas 

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A temática não é nova, a desgraça também não.  Menos ainda a tristeza, a dor, o luto de tantos e tantas.  E as vidas que se foram.  E a discussão posterior que em lugar de ir à raiz das causas começa a conjeturar como a morte pode ajudar a diminuir a morte injusta.  Ou em outras palavras: como a pena de morte pode ser a solução para o ataque ensandecido de mais um assassino inesperado e fatal. Perdoe o leitor. Mas não podemos deixar de, hoje, escrever sobre o bárbaro ataque ao cinema em Aurora, subúrbio de Denver, Colorado, onde várias pessoas no último sábado, 21 de julho, assistiam pacificamente à estreia do novo filme de Batman chamado tristemente: Batman - O Cavaleiro das Trevas ressurge.  

A violenta aventura batmaniana que prometia um ressurgir do Cavaleiro das Trevas de repente surgiu, assustadoramente encarnada na pessoa do estudante James Holmes, um jovem branco de 24 anos. Mascarado, Holmes abriu fogo aos 30 minutos de filme e, antes de sair, causou uma nuvem de fumaça com uma bomba de gás. Algumas das pessoas na sala de cinema acreditavam que a chegada do homem mascarado, de forma estrondosa, era parte do filme. O pânico teve início quando foi sacada uma arma e Holmes começou a atirar após ter lançado um gás que embaçou a vista e desorientou os presentes.  Pelo menos 12 pessoas morreram e 59 ficaram feridas. 

Na contramão do filme de Woody Allen A rosa púrpura do Cairo, onde o galã sai da tela e seduz a mocinha para o encantamento do cinema que a fazia esquecer sua miserável vida cotidiana, agora o Coringa mascarado parecia desejar entrar no filme do qual ansiava ser personagem, levando com ele os espectadores atônitos que só queriam divertir-se por uma tarde.  

Assim como o sonho de Mia Farrow no filme de Woody Allen, no entanto, esboroa-se diante da realidade de que a fantasia cinematográfica não é o mesmo que a realidade, a insana violência de James Holmes transformou a vida dos habitantes de Aurora em pesadelo.  E por extensão, a de todas as pessoas que hoje observam o mundo em que vivem, refletem e tiram conclusões de sua reflexão. Já muitas análises brilhantes foram feitas sobre o fato.  Queremos acrescentar mais uma.  

A nosso ver, há aí dois pontos importantes.  E o primeiro é que não é possível que tais monstruosidades continuem acontecendo de maneira a semear o pânico entre pessoas que só desejam viver, atravessar uma rua, tomar um trem, estudar em um colégio ou em uma universidade, ou ir ao cinema e passar a tarde comendo pipoca. Mais uma vez aconteceu. E mais uma vez no país que lidera o Ocidente e tem influência sobre o mundo inteiro. E desta vez no cinema, lugar de lazer onde pareceria que haveria certa dose de segurança.  Não há. A violência do filme entrou na vida real pesadamente, fazendo estragos irreparáveis.O assassino tem olhar vago, de alguém que está fora de si.  

Parece que teve notas baixas no doutorado que fazia, teria que retirar-se da universidade e, para descarregar sua frustração por engrossar a fileira dos excluídos na cruelmente competitiva sociedade em que vive, resolveu atirar para matar. Aos cinco minutos de fama que lhe foram concedidos sucede-se agora uma via-crucis de julgamento, interrogatório e discussão entre os mandatários do estado do Colorado para ver se pedem a pena de morte para o seu caso.  

Triste solução de tentar erradicar a morte com a morte, quando as estatísticas mais do que comprovam que os estados onde a pena de morte permanece só veem recrudescer a violência em seu interior. O segundo é que, parece, não adiantam muito discursos presidenciais, entrevistas a celebridades sobre o assunto etc.  Há que ir à raiz do problema. E esta já foi apontada e repetida até a exaustão por pensadores como o cineasta e escritor católico Michael Moore entre outros.  

Os Estados Unidos é uma nação com medo, em permanente estado de guerra.  E combate seu medo adquirindo e possuindo armas.  O fato de que um jovem de 24 anos possa ter em seu poder tal carga de armamentos e tal quantidade de munição fala alto sobre a terrível ameaça que pesa sobre o país enquanto a lei do porte de armas não for modificada. Trezentos milhões de armas de fogo dentro dos lares americanos é um estopim fácil para uma tragédia como a de Aurora.  E antes dela a de Columbine, da Virginia, e tantos outros.

Por trás da arma existe um ser humano — raivoso, frustrado ou insano. Que, se não estivesse armado, extravasaria seus explosivos sentimentos de outra forma. Provido de uma arma que pode comprar como se fosse batata frita ou coca cola, comete crimes como o do último sábado.  Hoje, Aurora desmente seu nome, mergulhada nas trevas que o título do filme de Batman anuncia.  O Cavaleiro das Trevas está de volta. E enquanto ele estiver munido de armas, todas as auroras estarão proibidas, pois qualquer luz se encontrará submergida em opacas e espessas trevas.


*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A Argila e o espírito - Ensaios sobre  ética,   mística e poética' (Ed. Garamond), entre outros livros.