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O golpe parlamentar no Paraguai 

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 A queda do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi planejada detalhada e secretamente de modo que nem os que vivemos aqui percebemos sua origem e processo. A meu ver, foi uma manifestação natural do confronto continental e mundial dos dois conceitos antagônicos de democracia: a que a define como o governo do povo, pelo povo e para o povo, e a que a vê como o governo das classes dominantes, pelas classes dominantes e para as classes dominantes.

Pessoalmente, caracterizo o golpe como  mercenário e farisaico.

Mercenário:  no sentido de que os principais autores do golpe não agiram por ideais mas por interesses. Entre eles havia proprietários de latifúndios, empresários do agronegócio da soja e industriais. Unidos a eles havia membros da alta burguesia, políticos dos partidos tradicionais, religiosos conservadores, presidentes de multinacionais, todos preocupados  com a ameaça que, a seu ver, Lugo  representava para suas propriedades, interesses e privilégios.

Sendo motivados por interesses e não por ideais, os mercenários matam sem remorso, como foi planejado pelos que infiltraram franco-atiradores entre os camponeses em Curuguaty para assassinar policiais.

Farisaico: o Evangelho apresenta o “fariseu” como uma pessoa religiosa e respeitosa da lei, mas que sempre despreza o povo e se considera superior às outras pessoas. Jesus chamou os fariseus de “hipócritas”, “raça de víboras” e “sepulcros caiados”. Qualquer semelhança entre este tipo de pessoa e os líderes golpistas está longe de ser uma mera coincidência.

CONTEXTO

Se os autores do golpe têm algum mérito, foi o de terem orquestrado magistralmente os elementos que compuseram o contexto sociopolítico do golpe. Os seguintes fatos serviram como detonadores: 1) A intensificação da luta dos camponeses por acesso à terra; 2) O aumento da proibição de sementes transgênicas, o que poderia afetar os enormes lucros da multinacional norte-americana Monsanto; 3)  A proposta de aplicação de impostos à exportação de commodities; 4) A fiscalização pela Senave de pulverizações tóxicas por aviões; 5) A decisão de realizar uma reforma agrária levando em conta que 82% da terra são de propriedade de 2% da população; 6) A probabilidade de volta ao poder pelo Partido Colorado; 7) A simpatia das esquerdas por Hugo Chavez e a proposta de retorno da Venezuela ao Mercosul; 8) A crescente organização dos camponeses; 9) O acesso do povo aos novos meios públicos de comunicação; 10) A crescente compreensão popular de que a democracia representativa deveria ser ampliada para uma democracia participativa.

Como em outros países latino-americanos,  vê-se na lista acima que o golpe foi motivado fundamentalmente pelo temor das classes que concentram os benefícios do desenvolvimento em relação a um governo que supostamente promoveria uma distribuição mais equitativa daqueles benefícios. Os autores do golpe aproveitaram a legítima ocupação de uma terra indevidamente apropriada e a expulsão de seus ocupantes para montar uma tragédia capaz de provocar  o juízo político do presidente.

O PROCESSO

Ninguém duvida de que o golpe no Paraguai teve sua origem e vinha sendo planejado há muito tempo. No início do período presidencial de Lugo o vice-presidente Federico Franco foi acusado de participar de reuniões claramente contrárias ao presidente, como a que ocorreu na embaixada norte-americana com a presença de militares daquela nacionalidade e da própria embaixadora.

O incidente de Curuguaty, que ainda está sendo investigado, demonstra que o assassinato dos policiais foi feito com armas de alto poder, usadas por franco-atiradores de exímia pontaria. A velocidade com que foi realizado o juízo político tem sido criticada no continente e em todo o mundo, não só porque não foi cumprido o “devido processo”, mas porque determinou a redação ridiculamente improvisada do libelo acusatório. Ficará na história esse episódio vergonhoso em que um presidente da República foi acusado sem provas com um prazo irrisório para preparar sua defesa. Os argumentos da defesa, de altíssima qualidade apesar do escasso tempo permitido para a sua realização, não foram analisados pelos senadores simplesmente porque a sentença condenatória já estava escrita. Foi um malfeito  legal, do qual os advogados paraguaios do futuro se envergonharão porque determinou a prostituição do Congresso Nacional e a desnaturalização do Estado de direito. O pior de tudo foi que a Constituição Nacional foi farisaicamente utilizada para manipular o fundo e a forma do processo  de forma a justificar o injustificável.

AS CONSEQUÊNCIAS

Os efeitos do golpe e juízo político  sobre a realidade política, econômica e social do Paraguai são imprevisíveis, mas provavelmente muito graves. Eles dependerão da capacidade do povo paraguaio de compreender o que realmente se passou, de indignar-se diante da índole farisaica e mercenária do golpe, e de, superando seus hábitos culturais de resignação fatalista, concretizar sua indignação em atos de resistência e luta. O futuro dependerá também da capacidade dos países vizinhos, especialmente os membros do Mercosul e do Unasul, de continuar mantendo sua decisão atual de não aprovar a interrupção de uma Presidência legitimamente estabelecida pelo voto livre dos paraguaios.

Uma das consequências positivas do golpe institucional está sendo o despertar da juventude paraguaia. Com efeito, ela esteve ausente nas lutas contra o Alca (Área de Livre Comércio das Américas), pela renegociação  do Tratado de Itaipu, pela reforma agrária e mesmo pela reforma universitária. No entanto, agora abriu seus olhos e está se organizando para a resistência pacífica. Se a juventude assume realmente seu papel, poder-se-á aplicar ao golpe o refrão espanhol No hay mal que por bien no venga. Tendo abertos os olhos para a necessidade de lutar pela justiça, os jovens perceberão a urgência inevitável da reforma agrária e do desenvolvimento equitativo do país e da necessidade de depurar o sistema judiciário.

Pode também ser uma consequência positiva a mudança e prática da política. Assim, não teremos mais no Paraguai uma política pragmática de interesses e resultados, que gera injustiça, exclusão, corrupção e perda de soberania e dignidade, mas sim uma política de  princípios e de serviço ao povo.

* Juan Diaz Bordenave, 86 anos, PhD em Comunicação e Educação, é autor de livros como 'O que é comunicação', 'O que é participação?'(Edit.Brasiliense) e de 'Além dos meios e mensagens' (Edit. Vozes), e atualmente membro do Conselho de Educação e Cultura do Ministério da Educação do Paraguai.