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Ter ou ser: eis a questão

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Entre as múltiplas definições de cultura que hoje circulam no mundo do saber, uma delas é “o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam  uma sociedade ou  um grupo social e que abarca, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças.” 

Isto que se convencionou chamar cultura, mas que pode ter já de entrada várias definições, segundo a área de especialidade desde onde se fala, é algo que tem sofrido grandes e profundas mutações na passagem da modernidade para a pós-modernidade. A tal ponto que passou a se constituir na área maior de interesse do ser humano hoje. O que era o “social” para a segunda metade do século XX é o cultural para este início de século XXI.   Porém a primeira dificuldade com esse estado de coisas é que o conceito mesmo de cultura não e mais tão unívoco.

O grande crescimento da importância dos problemas culturais se enquadra em um amplo contexto caracterizado pela lógica de uma sociedade produtivista que respondeu às necessidades elementares da população mais abastada e que, para continuar mantendo seu ritmo de crescimento e consumo, deve desenvolver e satisfazer as necessidades «  culturais «  de sua clientela.  Assim, a cultura se torna, mais que “valores” a defender ou idéias a promover, um trabalho a empreender sobre todo o tecido da vida social a fim de manter a maquina do consumo azeitado.  Trata-se de uma sociedade feita de “homens e mulheres que querem ter alguma coisa” e cada vez menos de homens e mulheres que” querem ser alguém”.

Quando falamos, portanto,  dessa cultura não mais hegemônica, mas plural como é a nossa, estamos, obviamente referindo-nos ao contexto  no qual vivemos toda a nossa vida e cujas rápidas transformações das ultimas décadas por isso mesmo nos espantam. 

Trata-se de uma cultura da passividade exatamente por ser uma cultura do espetáculo.  Instalada nos lazeres como compensação do trabalho, a cultura consumista desenvolve nos espectadores que são os homens e mulheres de hoje a passividade da qual ela já é o efeito.                         

A cultura serve para ajudar o indivíduo a escapar das questões mais candentes e mordentes da sociedade e consumir o vazio que vai nadificá-lo.  As formas atuais de conscientização e, portanto de aglutinação se fragmentaram e suas fronteiras já não são mais definidas.  Encontram-se, sim,  abertas fazendo inúmeras interfaces e provocando um novo recorte social onde os atores são dificilmente situáveis. 

Finalmente, a cultura se tornou instrumento de poder.  Tal como o que era ontem o folclore ou a cultura popular, a cultura de massa hoje permanece afetada pelo coeficiente social que a distingue de uma cultura operacional, sempre reservada. Ela não tem mais uma função colonizadora (no bom como no mau sentido da palavra: ao mesmo tempo civilizadora e conquistadora) como foi o caso durante longo tempo da educação que vulgarizava e difundia as concepções de uma elite.  Na verdade, a cultura se tornou um objeto rentável e maleável, segundo as necessidades da produção e do consumo, antes que uma arma de combate. 

O poder então se serve da cultura sem se comprometer com ela.  Não está mais comprometido nos discursos que fabrica.  Seu centro de atenção não está mais substantivamente na produção cultural, ou na difusão cultural, mas apenas tangencialmente.  E os produtos culturais servem à classe daqueles que os criam e são pagos pela massa daqueles que deles não usam nem aproveitam. 

A grande questão que isso levanta  é se os membros de uma sociedade como a de hoje, afogados que estão no anonimato de discursos que não são mais os seus, e submetidos a monopólios cujo controle lhes escapa encontrarão, juntamente com o poder de se situar em algum lugar, num jogo de forças assumidas, a capacidade de expressar-se.  

Parece que a questão não é mais a mesma que atormentava o Hamlet de Shakespeare: ser ou não ser.  Mas sim ter ou ser.  Se continuar alugando-se e vendendo-se a si mesma para que o consumo reine soberano, dominando e monopolizando a atenção dos indivíduos, seguramente a cultura não cumprirá seu papel de testemunha da maravilha que é o ser humano.  Rastejará ao nível das necessidades artificiais e não permitirá que apareçam os desejos que libertam e apontam para a Transcendência. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Deus amor: graça que habita em nós”  (Editora  Paulinas), entre outros livros