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Por que ler 'Grande sertão: Veredas'? 

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         Em tempos de discussão sobre o acesso aos discursos digitalizados em oposição aos registros impressos neste período de pós-modernidade, caberia ressaltar a importância de um clássico da literatura brasileira para a formação intelectual de um público leitor, a cada instante mais afeito ao processo de informação via internet? Alguns teóricos da literatura advertem que narrativas ficcionais que exigem maior fôlego de leitura, sobretudo Guerra e paz, de Tolstói, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, Os miseráveis, de Victor Hugo, A montanha mágica, de Thomas Mann, etc, não mais pertenceriam ao abreviado cardápio contemporâneo, que abdica do livro para debruçar-se sobre efêmeras postagens literárias ou não divulgadas em blogs, redes sociais e afins.

         Todavia, a julgar pelo título, estes escritos se predispõem a discorrer a respeito do romance Grande sertão: Veredas, para embrenharmo-nos de mãos dadas com Guimarães Rosa pelos buritizais e igarapés ao norte de Minas Gerais.  A princípio, deve-se explicitar que a saga do Grande sertão se estrutura na edificação de uma árdua linguagem lírica, construída pelo viés das reminiscências de um eloquente orador. As recordações narradas pelo protagonista se pautam por um vocabulário repleto de neologismos e arcaísmos, que aproximam o livro de João Rosa, como diria Manuelzão, célebre vivente vaqueiro deCorpo de baile, ao processo artesanal de âmbito idiomático d’Os sertões, de Euclides da Cunha.

Quanto aos neologismos, o poeta João Cabral de Melo Neto relataria que, em seu convívio com o autor de Sagarana, presenciara Guimarães Rosa dizer que alguns vocábulos ele próprio, Rosa, os fabricava, quiçá por engenho e alquimia. Por esta insólita razão linguística, o singular inventor reivindicava para si uma espécie de certificado de paternidade: “–– Esta palavra eu mesmo a fiz, Cabral”. Em retorno ao Grande sertão, os obstáculos impostos pela ruidosa inventividade – desconfia-se que, qual Manoel de Barros, a lavra rosiana era produzida em alambique de coloquialidade e erudição –, podem impulsionar o leitor a acobardar-se diante desta Odisseia sertaneja a lhe assoviar cantigas, qual a de Siruiz: “Olererê, baiana... / eu ia e não vou mais: / eu faço que vou lá dentro, oh baiana! / E volto do meio pra trás...” (ROSA, 1970, pág..54)

Destarte, é preciso acrescentar que o registro ficcional paira à luz de um subterfúgio de narração, que se ancora na visita de um suposto hóspede-leitor que, logo no início da intrincada fabulação, irá se dar conta da ambiência rústica e inóspita daquele território cultuado por um herói com reumatismo, Riobaldo, a preveni-lo como distinguir disparo de arma de fogo: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. (...) Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir (...)  depois, então, se vai ver se deu mortos” (ROSA, 1970, pág. 7).

Diante das complexas construções sintáticas, conquanto este leitor seja recebido a ferro e fogo, o impacto da organização das ideias alicerçado pelo esplendor de sua prosa encantatória faz de Guimarães Rosa um legítimo gênio da arte literária. Se esta justificativa ainda não for suficiente para enfrentar a leitura, sugiro que procure se entranhar na prosódia forjada pelo viés da análise das perspectivas e aflições deste jagunço-fazendeiro pautadas por um binômio, que abrange o pacto com o Demo e a paixão proibida por Reinaldo/Diadorim.

Por intermédio deste dúbio sentimento amoroso, instaura-se o enigma que irá se esboçar desde a ocasião de encontro entre Riobaldo e o Menino, até o derradeiro duelo desta espécie de ser andrógeno, Reinaldo/Diadorim, com o pactário Hermógenes. Enfim, pode-se apenas antecipar aos que ainda não leram o Grande sertão: Veredasque, entre o espaço narrativo que separa os dois episódios – há apenas uma constatação referente ao fato de que, aos treze anos, Diadorim já se travestia de Reinaldo; e, no momento em que o leitor se depara com a revelação do segredo daquele antigo Menino que, após peleja a punhal, se desnuda em Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins –, a obra literária se consagra numa das mais sublimes criações humanas de âmbito ficcional. 

 

Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autordos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco