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Saúde: o Brasil no meio do caminho   

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A comprovação da existência de uma relação causal inequívoca entre investimento financeiro na oferta de assistência e cuidados à saúde e melhoria das condições de vida seria extremamente útil para facilitar a vida de quem decide sobre a alocação de recursos públicos. Infelizmente não temos provas cabais sobre a proporcionalidade entre gastos assistenciais e saúde.  O contrário também não é verdadeiro. Como não é possível testar hipóteses que envolvem seres humanos, sociedades e Estados nacionais em laboratório, contentamo-nos em observar diversas experiências concretas e delas extraímos, mediante distintos juízos de valor, algumas certezas sobre os sistemas de saúde mais adequados às necessidades sociais e individuais. A intrínseca natureza política dos sistemas de saúde repele vaticínios definitivos sobre a forma de organização da oferta de serviços e quantidade de recursos financeiros adequada.  

Contudo, há fortes evidências sobre a maior efetividade dos sistemas universais de saúde em relação àqueles orientados pelo mercado. Países com sistemas universais de saúde gastam relativamente menos e possuem melhores indicadores de esperança de vida do que os demais. Os EUA apesar de gastarem 16% de seu avantajado PIB com saúde em 2010 tinham piores índices do que países europeus, Japão e Canadá.  Foi esse o principal argumento utilizado por Obama para debater os problemas do modelo de intervenção estatal e aprovar a reforma do sistema de saúde americano. Com base nos melhores resultados dos sistemas universais, organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde e a OECD tem desenvolvido estudos voltados à redução das desigualdades que afetam diretamente as condições de vida e saúde.   Trata-se de uma diretriz geral. Não há uma única receita para a organização de sistema universal. Entre os traços comuns dos sistemas universais destacam-se uma base fiscal progressiva (quem tem maior patrimônio e renda contribui mais) e predomínio da oferta pública de serviços de saúde.  Mas, essa arquitetura básica adquiriu contornos diversificados em cada país.  Hoje essa construção denominada Estado de bem-estar social está ameaçada pela crise econômica iniciada em 2008.

Consequentemente fica difícil prever se as recomendações de instituições multilaterais terão potência para reorientar os sistemas de saúde, especialmente os dos países em desenvolvimento. As médias mundiais em 2010 de gastos com saúde, puxadas por nações com renda alta, são: 10% de gastos do PIB; US$ 855 per capita e apenas 17,6% das despesas custeadas pelas famílias. Nações populosas como Índia, China, Rússia, com taxas elevadas de crescimento econômico, que investiram menos de 6% do PIB e apenas US$ 169, US$ 45 e U$ 475 per capita em saúde estão às voltas com imensos desafios para dar conta das necessidades de seus habitantes.  Essas disparidades refletem situações de acesso aos serviços de saúde polarizadas, em termos de quantidade e concentração de tecnologias diagnósticas e terapêuticas. Entretanto, a esperança de vida em 2009 dos chineses (74 anos) é maior do que a dos brasileiros (73 anos), ainda que nosso país gaste com saúde US$ 734 por habitante. Ou seja, não é só a quantidade dos gastos que assegura melhores padrões de vida. 

Os padrões superiores de condições de saúde estão claramente associados com sistemas de saúde coordenados pelo Estado. Ao contrário de outras políticas sociais, os orçamentos para a saúde, em países com sistemas universais, são crescentes e sempre superiores ao crescimento da economia. Costuma-se dizer que a saúde possui uma inflação própria, determinada em grande parte pela inovação tecnológica setorial e envelhecimento populacional.  Decorre, portanto do uso planejado de recursos a melhor performance dos sistemas universais.  

Antes da crise, o pensamento corrente entre estudiosos dos sistemas de saúde era que o mundo caminharia para uma convergência. Países mais pobres com sistemas de saúde pautados pelo mercado iriam se aproximar dos padrões das nações afluentes.  Nesse momento, as previsões contrárias não podem ser descartadas. Os cortes nos orçamentos da saúde de países como Espanha, Portugal e Grécia cujas despesas eram crescentes certamente comprometerão a abrangência das ações assistenciais. Mesmo que os países escandinavos e outros situados fora do perímetro imediato da crise não sejam diretamente afetados e que a recuperação impeça o desmonte de tradicionais sistemas de saúde, a incerteza sobre o futuro desautoriza previsões.  Os sistemas de proteção social, cujo componente saúde é o mais dispendioso, foram erigidos sobre dois pilares: solidariedade fiscal e desmercantilização da medicina.   Esses suportes estão sendo corroídos pelo desemprego e financeirização das organizações encarregadas de prestação de serviços de saúde.  

O Brasil está literalmente no meio do caminho. Embora o Índice de Desempenho do SUS, divulgado recentemente, seja polêmico, a nota 5,4 alcançada pelo SUS expressa a hesitação para definir a adoção no país de um sistema universal.  O SUS apesar do nome não se consolidou como único, tampouco é um sistema residual, uma vez que serve de retaguarda para cobrir os buracos das coberturas dos planos e seguros privados de saúde.  As  consequências de uma política de saúde universal meia-boca são dramáticas.   A taxa de mortalidade infantil no bairro da Abolição (35,5 por 1.000 nascidos vivos em 2006) foi sete vezes maior do que a calculada para moradores do Jardim Botânico, ambos situados na cidade do Rio de Janeiro.  Assim, avançamos, mas levando junto um peso de iniquidade que desacelera a marcha. 

* médica, especializada em saúde pública pela Fiocruz e UFRJ