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Servidor ficha limpa 

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O padrão ético dos prestadores de serviços públicos é matéria de interesse de todo o povo, que paga pelos serviços e é usuário deles, não sendo justo nem aceitável que o aparato do governo ou da administração pública funcione mal e preste serviços de qualidade inferior porque um servidor agiu mal, deliberadamente, com o objetivo de obter vantagens para si próprio ou beneficiar terceiros, ou tendo o propósito de prejudicar alguém. Na realidade, desvios dessa natureza prejudicam diretamente quem necessita dos serviços, mas na realidade prejudicam a todo o povo, que é usuário imediato ou potencial e que tem o direito de exigir serviços da melhor qualidade possível, sejam eles destinados ao conjunto da população ou a usuários individualizados. Os mesmos motivos que justificam a exigência de integridade moral dos que pretendem candidatar-se para a obtenção de um mandato do povo por via eleitoral valem como justificativa para que se faça a mesma exigência dos que irão exercer cargo ou função no serviço público mediante nomeação de um governante. 

Na linha dessas considerações, discute-se hoje na Câmara Municipal de São Paulo a aprovação de uma lei que, paralelamente ao que dispõe a chamada Lei da Ficha Limpa, fixará  barreiras legais para o acesso a cargos e funções do município de São Paulo aos que se enquadrarem em alguma das hipóteses da Lei da Ficha Limpa. Os mesmos critérios nesta fixados para estabelecer a ilegibilidade dos que tiverem sofrido condenação judicial por práticas ilegais contrárias à moralidade pública serão utilizados para impedir a nomeação, contratação ou designação  para cargos e funções da municipalidade paulistana. 

A Lei da Ficha Limpa representa um avanço considerável, dentro dos parâmetros legais, para barrar as ações dos que, já comprovadamente desprovidos de princípios éticos, pretenderem a obtenção de um mandato popular para integrarem o Legislativo ou Executivo em qualquer instância. A ideia de uma lei municipal vedando o acesso dos imorais aos cargos e às funções públicas do município é altamente louvável e merecedora de todo o apoio. Para antecipar a resposta a eventuais alegações de inconstitucionalidade, é oportuno relembrar os aspectos constitucionais que poderão dar ensejo a objeções, para evitar que isso ocorra quanto à lei municipal que for aprovada. 

Foi alegada a ofensa ao princípio constitucional da irretroatividade das leis, na tentativa de sustentar que a condenação por práticas contrárias à moralidade pública somente seria impeditiva se tal condenação fosse posterior ao início da vigência da Lei da Ficha Limpa. Essa alegação foi rejeitada pela Corte Suprema. Mas é preciso ter claro que uma lei municipal proibindo a nomeação, contratação ou designação a qualquer título, para a ocupação de cargo ou o exercício de função no município, de quem tiver sofrido condenação por ofensa ilegal à moralidade pública, só poderá ser aplicada a contratações ou designações posteriores à vigência da lei municipal que estabelecer a proibição, o que não atinge a situação dos que já tiverem sido nomeados ou contratados antes daquela data. 

Outro aspecto que é importante considerar é o da competência do município para legislar em tal sentido. Na realidade, a menção à Lei da Ficha Limpa é meramente exemplificativa, pois uma lei municipal estabelecendo a vedação de acesso aos cargos e funções, a quem já tiver sofrido condenação por práticas ilegais contra a moralidade pública, tem perfeito enquadramento constitucional. Com efeito, no artigo 37 a Constituição da República dispõe sobre os princípios que regem a administração pública, estabelecendo, no inciso I, que «os cargos, empregos e funções são acessíveis aos que preencham os requisitos estabelecidos em lei». Assim, se uma lei municipal estabelecer como requisito a não condenação por improbidade, a interdição a quem ofenda esse princípio é rigorosamente constitucional. A par disso, tenha-se em conta que a Constituição, em seu artigo 30, dá competência ao município para «legislar sobre assuntos de interesse local» e não há dúvida de que a exigência de bons antecedentes para acesso aos cargos e funções da administração pública municipal tem perfeito enquadramento entre os assuntos de interesse local. 

Por tudo isso, é digna de louvor e apoio a iniciativa dos vereadores do município de São Paulo, adotando um equivalente da Lei da Ficha Limpa no âmbito municipal, o que, sem dúvida, contribuirá para reduzir o espaço daqueles que, desprovidos de consciência ética, procuram ocupar uma posição na administração pública para a consecução de objetivos contrários à moralidade pública. E uma iniciativa dessa ordem no município de São Paulo deverá estimular iniciativas semelhantes em outros municípios, o que será valioso para o avanço no sentido da garantia da ética da administração pública.

* Dalmo Dallari é jurista. - [email protected]