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O Haiti é aqui?  

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Poucos povos no mundo suscitam tanta compaixão como os haitianos. País golpeado por toda sorte de catástrofes, aliado a uma extrema pobreza, a meia ilha francófona do Caribe tem sofrido indescritivelmente.  Em 2010, toda essa série de desgraças e infortúnios foi sinistramente coroada com o terrível terremoto que ceifou tantas vidas.  Entre elas estava a da brasileira ilustre doutora Zilda Arns. 

O Haiti não conseguiu ainda levantar a cabeça depois do terremoto. Desde a catástrofe que arrasou o país e matou mais de 220 mil pessoas, em janeiro de 2010, chegaram vários milhares de haitianos ao Brasil. Falta tudo em seu território, e os filhos da terra, em desespero, buscam vida mais humana em outras paragens.  Em seu intento de escapar da morte perene em que se transformaram suas vidas, muitos deles e delas aportam no Brasil. 

Estima-se em cerca de 8 mil o número de haitianos que já cruzaram a fronteira brasileira através de cidades fronteiriças.  Pagam às vezes caro aos coiotes que os trazem por caminhos escusos e obscuros ao solo brasileiro.  No coração e na cabeça, o sonho e a esperança de, enfim, encontrarem trabalho, uma vida digna, mais humana, com mais qualidade. Deixaram para trás um país dizimado pelo terremoto. E também o túmulo e a memória dolorosa de parentes mortos na tragédia. 

O Brasil emergente povoa suas imaginações e ameaça reeditar em versão tupiniquim a  conhecida tragédia do “sonho americano”, que em toda a extensão da América Latina tem custado a vida e a liberdade de milhares de imigrantes. Indocumentados, ilegais, sem papéis, sem trabalho, terminam deportados ou mortos.  Mas as ondas que cruzam a fronteira não param.  Qualquer coisa é melhor que a fome, que a vida sem perspectivas para a família e os filhos. 

O Brasil da Copa do Mundo, da Olimpíada e da economia aparentemente pujante enche suas cabeças da ilusão de aqui encontrar  um mundo de oportunidades. No entanto, a realidade é bem outra. Chegam aqui e não conseguem permanência legal, nem emprego, moradia, ou alimentação. Apenas trocam de calamidade.  São algumas vezes atendidos pela caridade das Igrejas locais, que recebem doações e lhes servem uma refeição por dia.  Amontoados em abrigos, sem condições dignas de vida, vão formando com sua presença uma gritante interrogação que faz relembrar a canção de Caetano Veloso: O Haiti é aqui?  

Enquanto até 2010 os haitianos cruzavam a fronteira como qualquer turista, a partir de março de 2011 começaram a ser impedidos de fazê-lo.  Muitos tiveram que permanecer nas cidades fronteiriças.  As autoridades brasileiras passaram a controlar o ingresso e a passagem para a desejada terra. 

No dia 10 de janeiro, o governo federal brasileiro anunciou uma série de medidas visando a conter o fluxo do deslocamento de haitianos para o Brasil. Só serão aceitos legalmente os que tiverem visto emitido pela embaixada brasileira em Porto Príncipe. Esta, por sua vez, emitirá apenas 100 vistos de trabalhos ao mês.  Só os que estiverem de posse destes vistos poderão aceder ao solo brasileiro. Quem estiver em situação irregular será deportado.

Tampouco se concederá aos haitianos a condição de refugiados políticos. Não é considerada política a razão pela qual deixam seu país e, sim, de mera vulnerabilidade econômica. A viagem da presidente brasileira ao Haiti, em fevereiro, deixa entrever alguma esperança de que este tema seja tratado na agenda e mesmo priorizado. 

Provoca imensa tristeza  — e vergonha — ver um país como o nosso, que sempre teve atitude favorável à entrada de estrangeiros; que deve, inclusive, a estrangeiros muito de seu desenvolvimento, adotar atitude truculenta para com esse povo tão sofrido. Dói muito ver o Brasil mimetizando potências estrangeiras na discriminação ao estrangeiro que vem em busca de trabalho e oportunidade.  Em busca de vida, enfim. 

De que serve um coração se não bate pelo Haiti? – cantava uma canção de Jorge Drexel, composta logo após o terrível terremoto de 2010.  E Caetano clamava e convocava: “Pense no Haiti, reze pelo Haiti.”  Quando comermos mais de três vezes ao dia, e estivermos dormindo em camas confortáveis, abrigados em casas seguras, cercados por nossos familiares e entes queridos, é bom pensar e rezar pelo Haiti.  E mais: pensar e rezar pelo Brasil, para que não entre no caminho de um poder cego e de um capitalismo voraz, que considera indesejáveis seres humanos que buscam seu território para ali trabalhar e viver dignamente.  Que o Haiti seja aqui e que o Brasil seja haitiano na acolhida e abertura a esses que vêm saídos da grande tribulação da pobreza e do abandono. 

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. - [email protected]. É autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco).