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Sobre fidelidade e/ou infidelidade 

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Há mais de dois anos, um jovem pai de família de 34 anos aguarda no cárcere o julgamento que pode decidir por sua execução e morte. Seu nome: Youcef Nadarkhani. Seu crime: desejar que seus filhos sejam formados na sua religião, o cristianismo. Sucede que Youcef Nadarkhani é iraniano e vive em Rasht, que exatamente em 2009 determinou que o ensino do islamismo se tornasse obrigatório em todas as escolas.

Cristão evangélico e pastor, Nadarkhani procurou a direção da escola onde estudavam Joel e Daniel, seus filhos, a fim de solicitar que fossem liberados da assistência às aulas que ensinavam a religião islâmica.  A escola negou-se a atendê-lo. Nadarkhani então retirou os dois meninos  da mesma.  No mesmo dia o serviço secreto iraniano o prendeu.  

Desde então, o jovem pastor aguarda julgamento no cárcere e passa por tribunais,  em verdadeiro processo kafkiano. Foi condenado à morte e apelou da sentença para a Corte Suprema.  Essa devolveu o caso para os tribunais locais alegando pouco tempo para a defesa do réu. Enquanto isso, o pesadelo de Nadarkhani continua.  Na prisão lhe oferecem exemplares do Alcorão para que o leia e se converta.

Órgãos internacionais protestam contra a ameaça que paira sobre a cabeça desse jovem iraniano.  E existe o temor de que seja executado em segredo, como já tem acontecido em outros casos. O que mais agrava seu caso é o fato de ser um cristão iraniano.  Pois, enquanto há tolerância e liberdade no Irã com cristãos armênios e assírios – considerados “cristãos étnicos” – o mesmo não acontece com nativos que se convertem do islamismo.  

Nadarkhani é um iraniano, fala a língua local, faz suas pregações em persa. Nasceu em família muçulmana e converteu-se a uma denominação evangélica carismática. Representa, portanto, uma potencial ameaça no sentido de que é mais fácil a ele do que a estrangeiros converter seus compatriotas. Para livrar-se da condenação bastaria abraçar o islamismo.  Como se nega a fazê-lo, permanece acusado de apostasia, crime que não consta no código criminal iraniano, mas sim na sharia, conjunto de leis baseado no Alcorão. 

O drama de Nadarkhani não é novo na história da humanidade. Há mais de 20 séculos a Roma dos imperadores assustou-se muito com uma seita religiosa que seguia um certo Galileu chamado Jesus, que havia sido condenado e morto sob Pôncio Pilatos. Aqueles e aquelas que dela participavam eram obrigados a esconder-se em catacumbas e celebrar seus ritos e cultos em segredo. Se descobertos e capturados, eram instados a negar sua fé e prestar culto ao imperador. Recusando-se, eram condenados à morte por crime de ateísmo.

Tempos depois, na Idade Média, foi a vez de o cristianismo oficial desfechar perseguições contra os infiéis muçulmanos que habitavam no Oriente Médio a fim de recuperar os santos lugares.  Com o “descobrimento” do Novo Mundo, igualmente, a cruz do Galileu que morreu perdoando seus inimigos foi usada para converter à força indígenas e escravos africanos para “salvar suas almas”. 

Descendentes de judeus foram igualmente obrigados mais tarde a abandonar a religião de seus pais, a fim de poderem ser “reconciliados” pela Inquisição que a tudo e a todos vigiava em busca de heresias, apostasias, bruxarias, multiplicando as fogueiras, as execuções públicas, os autos da fé. 

Veio a secularização, e um de seus momentos altos, a Revolução Francesa, esmerou-se em levar ao cadafalso e à guilhotina quantos católicos encontrasse pelo caminho, inclusive padres, freiras, conventos inteiros.  A lista poderia seguir.  Pois o processo se reproduziu na Espanha em guerra civil, onde atrocidades eram cometidas pelas facções franquista e comunista, que não toleravam pessoas ou instituições com posições políticas e/ou religiosas diferentes das suas. 

Como vemos, o caso do jovem pastor iraniano que aguarda no corredor da morte o desfecho de seu dramático caso não é novo.  Não deixa, porém, de ser igualmente cruel e incompreensível.  Acusado de infidelidade ao islã, Nadarkhani recusa-se a abrir mão de outra fidelidade: aquela que encontrou em outra religião que passou a ser a sua.

Não se trata aqui de discutir qual é a verdadeira ou qual é a melhor.  As guerras de religião são o fruto perverso dessa discussão que nunca foi capaz de chegar ao diálogo.  Trata-se de algo objetivo: uma vida humana está em perigo por não querer abrir mão da fidelidade que estrutura sua vida. Impedi-lo de viver essa fidelidade tirando-lhe a vida é algo abominável do ponto de vista humano, independentemente da religião professada por acusadores e réus. Por ser humano, Nadarkhani tem direito a viver em liberdade e a praticar livremente sua fé. 

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco).