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Celas de aula I – A fábula da educação jesuítica

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Nos primórdios da colonização desta Ilha de Vera Cruz, posteriormente reconhecida Terra de Santa Cruz e, enfim, Brasil, em razão de um cobiçado pau de tinta, os religiosos da Companhia de Jesus se aperceberam de que o aprisionamento do imaginário dos silvícolas ameríndios, poligâmicos e antropófagos, seria mais proveitoso se almejassem resultados práticos de catequização de cunho evangélico e civilizatório. Destarte, por intermédio de uma cega obediência às parábolas bíblicas de ordem social, os indígenas aculturados serviriam de mão de obra escravizada física e mentalmente, com a súdita incumbência dos afazeres agrícolas e de engenho ou mesmo domésticos de cozinha, catre e alcova. Para expansão dos domínios humanos e políticos, o catequizador-mor lusitano de nomeada Manoel da Nóbrega encomendou peças teatrais a um seu subordinado hábil e talentoso, escriba andarilho que, doravante, se alcunharia São Anchieta. De pronto e imediato, o então jesuíta José se debruçou por sobre episódios sacrossantos e lendários de origem indígena, a fim de que inaugurasse uma dramaturgia de caráter pedagógico e moralizante, cujos intentos cênicos culminassem na abolição dos costumes e tradições das bárbaras criaturas sem alma e evangelho descritas por Vaz de Caminha.  

O desígnio evangelizador jesuítico predizia que as missas-espetáculos coibissem as execráveis e pavorosas cerimônias de rituais antropófagos decantadas por Hans Staden, Montaigne e Jean de Lery.  Ao mesmo tempo apregoava-se que as encenações amainassem a congênita poligamia atávica denunciada por Fernão Cardim e Gândavo e o exagerado consumo de um tal licor batizado como cauim de milho, que se fabricava por intermédio da saliva das alvissareiras e virginais selvagens habitantes deste Paraíso Terreal.  Em verdade, objetivava-se que os autos de José de Anchieta incutissem no imaginário do primeiro e incauto habitante deste Éden brasilis a figura de um Deus benévolo, sobretudo com aqueles súditos que assimilassem as doutrinas, preceitos e dogmas da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Domesticados pela arte de Gil Vicente, decerto se extinguiria a necessidade dos castigos físicos por sobre o couro dos tupiniquins, vez que a escravização do espírito, quiçá, substituiria até as ameaças dos púlpitos com sermões aos incréus desprovidos de amém e vestuário.

Em subsequente patamar histórico, é sabido que, ao aportar dos sangrentos navios negreiros, as prerrogativas refratárias à escravização do indígena destes trópicos, se multiplicaram de tal modo que, ao relegar o índio ao papel de coadjuvante, o branco de hóstia e batina deu as costas ao seu suposto ensino e educação. Todavia, até a providencial intromissão do indômito Marquês de Pombal, os jesuítas se ocuparam da educação canônica dos caboclos portugueses do Brasil e de cristãos novos da mais próspera colônia lusitana a partir do século 17. Ocorre que os métodos de inserção de uma aprendizagem que se pautava pelo temor ao crucifixo foram supridos pela palmatória do instrutor latinista e gramático. Com a obrigatoriedade da instauração de um ensino laico, as intempestivas advertências do mestre-escola afiguraram-se por métodos de concepção de uma inteligência pernóstica e mutilada, para no período pós-Independência se atrofiar nos subempregos a que são destinados em desamparo e pusilanimidade os herdeiros de coito e ignomínia dos mandatários desta pátria mãe gentil.  

Por este artifício estúpido e arbitrário se perfaz o introito sociológico para denunciar que antigas práticas pervertidas de educação ainda se fazem presentes na dita contemporaneidade, quando nos deparamos com a mutilação do raciocínio crítico e da aptidão de questionamento de uma malfadada parcela da população miscigenada não oriunda dos ensinamentos de Santo Inácio de Loyola, Agostinho ou Bento. Entretanto, neste lendário país de faz de conta que um eficiente ministro da Educação vem a ser exonerado via Embratel, muito provavelmente de nada adiantaria se rebelar contra um notório sistema de amputação de ideias a que são submetidas vítimas inocentes, encarceradas pelo heroico sacerdócio de combalidos professores mal agraciados com ínfimas remunerações que, por muito pouco, ultrapassam os cifrões de um vergonhoso salário mínimo de fome e humilhação.

A este patamar de inépcia e descaso, é preciso ainda dizer que se adicionam as condições indignas de um trabalho semiescravizado, cujas castrações morais reputam a uma identidade profissional provinda de condutas estagnadas em presídios de aprendizagem supostamente chamados de colégio ou escola, em exímias celas de aula da rede pública de ensino, em que se encarcera num espaço de negligência e desmazelo o maltrapilho aluno a clamar por misericórdia e livre-arbítrio, conforme ecoa na bela e revolucionária canção registrada em período de pós-cativeiro: “Liberdade, liberdade / Abre as asas sobre nós / E que a voz da igualdade / Seja feita a nossa voz.”

Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco