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Corrupção na linguagem e a nova sombra do mundo

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Nos últimas semanas pudemos ler e ouvir gente abusando de vitupérios contra os semelhantes, mas, desta feita, os xingamentos tiveram uma peculiaridade: os supostos algozes ou desafetos eram chamados de nazistas. O mais recente envolveu um cineasta e o curador de um festival literário. Não é um caso encerrado porque, cedo ou tarde, isso se repetirá. Reprisemos, na ordem reversa, as cronologias de outros fenômenos emblemáticos: piadas beócias e degradantes vinculando trens de deportação aos campos e uma estação de metrô, cineasta em Cannes confessa simpatia por Hitler, estilista britânico se declara nazista em Paris, escritor luso usa a expressão para criticar o governo israelense. Teocracias e ditadores dizem abertamente que o país judaico deve ser eliminado, teses revisionistas aparecem, primeiro timidamente, depois ganhando surpreendente apoio, sugerindo que o extermínio e os campos de concentração eram invenções dos roteiristas de Hollywood. Como se vê, a língua está bem mais solta. Definitivamente, há algo de podre.

Importante reconhecer as assimetrias morais entre os fatos acima inventariados, mas infelizmente fazem todos parte da mesma matriz, que sempre começa assim mesmo, com corruptelas de linguagem. A polêmica mais recente está no campo do ultraje desqualificar alguém como nazista tendo como agravante ter apontado o dedo para alguém que resistiu, e sobreviveu, ao nacional socialismo alemão. Ora, se diante de qualquer polêmica mais aguerrida ou de um temperamento mais inflamado formos lançar mão do termo, logo arregimentaremos de volta o próprio partido. Há ainda o agravante: chamar um judeu de nazista é, de alguma forma, o apogeu da perfídia. Isso é só mais uma prova indireta da força e triunfo parcial do revisionismo que banaliza o Holocausto.

É importante reparar que, nesses casos, não há por que encarar os fenômenos como manifestações intempestivas, no afã de provocar polêmica ou risada fácil. Desta vez, não se trata das baixarias televisivas, se trata -- e é isso que interessa -- de fenômeno mundial, de grave relevância política.  

Preconceitos, como já nos ensinou a hermenêutica filosófica, não podem ser desprezados. Eles não só existem como vez por outra sua força reprimida vem à tona, eclodindo de forma nua, inaudita e, às vezes, execrável. Quando o sujeito se dá conta, pronto, a verdade simplesmente escapuliu da boca. 

A promoção da cultura da paz é elemento essencial para qualquer civilização, e ela – se é que ainda há tempo – pode assegurar e garantir os direitos civis.  Um dos papéis da imprensa sempre foi, de uma forma ou outra, promovê-la. Há urgência nisso. Por tudo isso o aumento exponencial de declarações antijudaicas – muitas vezes nuançadas – de astros, ícones da moda, diretores de cinema e jornalistas chama muito a atenção.  Desde o fim da Segunda Guerra não se viam tantos atos de vandalismo e hostilidade contra judeus na Europa. Mas essa é apenas a parte visível, a onda é muito maior. Abrange as hostilidades anti-imigrantes que varre o mundo.  O que elas têm em comum é que se nutrem da mesma sanha:  ódio ao estrangeiro. Vale dizer, aos “estranhos” entre nós. Este não é um medo novo.  Indo um pouco adiante na reflexão, toda manifestação mais veemente ou singular faz do sujeito um risco à média social. Para uma sociedade de massas, tudo que destoa pela autenticidade, veemência ou vigor merece repressão e repreensão.  

Esse contexto, associado à escalada de governos xenófobos, de partidos de direita ou de esquerda – enfim reunificados numa causa comum – nos conduz a prognósticos desfavoráveis e, talvez, mais que nunca, faz valer a máxima – parafraseando Gramsci – de que a história ensinaria, desde que ainda houvessem alunos.

 Inquietante observar que, quase acriticamente, a mídia jornalística parece dispor de  paciência alongada. Transforma e replica declarações, deslizes da linguagem, e às vezes as próprias intolerâncias, em meras manchetes informativas. O sensacional vende, mas nem sempre a neutralidade é uma virtude.  

Tudo passa, portanto, por um ódio polissêmico, sem foco definido. Pode ser que a aversão ao estrangeiro é que esteja na raiz desta nova sombra que invade o mundo. Mas há uma escolha: a maioria precisa renunciar à plataforma política de exigir uma sociedade homogênea. Por favor, deixem as minorias viver em paz.   

* Paulo Rosenbaum, médico, poeta e escritor, é roteirista e produtor de documentários, e foi editor de revistas científicas no campo da saúde.