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Sistema falido

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É justo que a sociedade brasileira deseje um sistema de saúde público, universal e eficiente, de modo a atender a suas necessidades de assistência médica. No entanto, para sua decepção, o sistema vigente, o Sistema Único de Saúde, visto como grandioso pela esquerda sanitária, não passa de uma anomalia, gestada na 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, quando os seus mentores, os teóricos do SUS, se omitiram quanto a participação do setor privado da saúde no sistema que estava por vir. Esse recuo, ainda na fase de discussões do fórum, propiciou o sucesso do lobby do setor privado, que se concretizou, dois anos mais tarde, na forma de participação complementar, segundo o prescrito na Constituição de 88.

A possibilidade, ainda hoje, da atuação institucional deste setor, é consequência do oportunismo da esquerda que dominou e manipulou os debates da 8ª Conferência, levando em consideração apenas os seus interesses imediatos e de médio prazo, ao mesmo tempo em que desprezava as reivindicações dos segmentos mais combativos e representativos da nossa sociedade. Essa esquerda reformista foi, sem dúvida, o primeiro inimigo interno do SUS.

Ao capitularem diante de pressões privatizantes, “os pais do SUS” abriram caminho para a implantação de um sistema híbrido, onde público e privado passaram a conviver numa contradição insuperável, pois a tão almejada síntese, com a associação desses campos de ação, se tornou impossível, em face da ótica do lucro adotada por um deles. Essa dialética não resolvida torna o sistema estéril e ilógico. Como conciliar, então, visões tão díspares da saúde pública num mesmo sistema? Não há como, porquanto uma política de saúde, realmente pública, ao ser instituída e implementada, tem por escopo apenas o bem-estar físico e mental da população, às custas do bom investimento do dinheiro público. Por esse motivo, o Estado brasileiro não pode se dar ao luxo de bancar hospitais e clínicas privados, que pelas leis da economia capitalista deveriam concorrer, entre si, sobrevivendo os mais capazes.

Despojado de um caráter integralmente público, conforme o observado no seu arcabouço jurídico, o SUS transforma-se num mero guarda-chuva protetor do setor privado da saúde, ao lhe repassar verbas federais na forma de Autorização de Internações Hospitalares (AIHS) ou quando o remunera por procedimentos médicos realizados. Infelizmente, esse repasse garante a sobrevivência dos incapazes à concorrência, além de sugar recursos consideráveis das fontes de financiamento do sistema, desfalcando a saúde pública de recursos preciosos ao atendimento médico gratuito. A partir daí, começa o choque entre os interesses da população, ávida por serviços públicos de qualidade, e os interesses econômicos do setor privado.

Com o diagnóstico dos vícios de formulação do SUS, na conta da esquerda acadêmica, negocista e dona da verdade, vamos agora ao descaso dos nossos governantes com relação à saúde pública. Nessa matéria, o atual governo federal também colabora para inviabilizar o SUS, surfando com os privatistas na onda neoliberal, rumo à privatização da saúde. Esse movimento se dá de duas formas: através do discurso da gestão, que atribui todos os males do SUS à má gerência, quando, na verdade, discutir o SUS é discutir investimentos e com a adoção de políticas neoliberais de cunho restritivo, cujo fundamento está na má aplicação dos recursos financeiros e não na insuficiência deles. Todavia, para desagrado do governo petista, esses argumentos não se sustentam, quando se sabe que a posição de arrecadação do governo federal é da ordem de quase 2 trilhões e, até o momento, o governo gastou em saúde, pouco mais de 4 bilhões, o que significa dizer que, nos sete meses de governo Dilma, o governo federal aplicou apenas 0,63% em saúde, menos de 1%. Ainda de acordo com a OMS, o Brasil figura entre os países que menos gastam com a saúde: em 2011, a Lei Orçamentária da União destinou para o Ministério da Saúde um montante menor que 2% do PIB, enquanto a previsão de gastos com juros reais no ano é de 8,63%.

Esses números se tornam mais estarrecedores quando se sabe que o Estado brasileiro fica somente com 42% do percentual do PIB destinado à saúde para atender 80% da população ( 160 milhões de pessoas), enquanto o setor privado, que abocanha 58% do total dos recursos, atende apenas 20% da população. Agrava a situação a entrega da gestão pública a grupos privados, as chamadas organizações sociais, dentro do espírito das novas modalidades de gestão, implantadas em nosso país, a partir do governo FHC, sob a inspiração do Livro Branco da Reforma do Estado, elaborado com a colaboração teórica de alguns defensores do Estado mínimo, entre eles, Bresser Pereira.

Diante disso tudo, hoje, nos debates públicos e instâncias acadêmicas, é uma obrigação denunciar a falência do SUS. Por outro lado, devemos aproveitar a oportunidade das discussões para propor um novo sistema, realmente público, público na sua inteireza, sem espaço algum para o setor privado e tendo o Estado como o único garante.

* Thelman Madeira de Souza é médico. - [email protected]