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Artigo - A saudade é minha culpa 

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As frases não ditas são eternas. Não era o que eu queria dizer. Nem o que o ela teria dito. Mas já estava lá, escrito, como se fosse para nós. O que ficou de você em mim foram os fragmentos, polímeros, fractais, resíduos.

E o teu queixo no queixo do meu filho. Teu genoma em cada livro. Tua face em cada linha. Teu sangue em cada frase. Minhas frases, tuas digitais, e teu queixo, teu texto. O que você lê agora é o que resta nos olhos do rufião. Sobrevivi a expensas de galanteador, mas não voltei a me encontrar. Depois de você, todas tinham o mesmo defeito: nenhuma delas era você.

Nunca nenhuma delas será você. Os outros são nossos narradores. Não há fuga possível para o discurso alheio que nos constrói. Estamos à mercê dos advérbios que não queremos, dos adjetivos que não merecemos, dos pronomes que foram trocados (de propósito). Nossa história não nos pertence. Não temos tempo. Tempo é expectativa. É o portão de ferro da angústia.

Mas se você estivesse aqui, tudo seria diferente! Se você estivesse aqui, pela oitava e única vez, prometo que tudo seria diferente. Se você estivesse aqui, eu ouviria os comentários sobre meu egoísmo, concordaria com as mudanças, aceitaria as críticas, não me importaria com a verdade.

Se você estivesse aqui, o teu egoísmo não seria necessário.

Se você estivesse aqui, alugaríamos um apartamento bem pequeno para que os desencontros acabassem se encontrando.

Se você estivesse aqui, chegaríamos no mesmo passo, enfrentaríamos a chuva, dividiríamos a capa e a marquise.

Se você estivesse aqui, comeríamos no mesmo prato, dividiríamos a carne, beberíamos o licor no copo de vinho.

Se você estivesse aqui, levaria teu avô ao médico, cuidaria do teu pai, educaria teu irmão e te daria um filho.

Se você estivesse aqui, arrumaria um quarto pra tua mãe, fingiria que gosto dela e ainda acreditaria nos elogios.

Se você estivesse aqui, dormiríamos até mais tarde, com a cortina fechada e o mundo lá fora, sem importância.

Se você estivesse aqui, passaria o creme nos teus pés depois de lixar tuas unhas pra te livrar da solidão.

Se você estivesse aqui, eu me sentaria na beirada da cama por duas horas, com o paletó fechado, enquanto você escolhe o vestido da festa.

Se você estivesse aqui, puxaria o zíper até o final das costas, deixando minha respiração no pescoço perfumado.

Se você estivesse aqui, sairíamos pela noite da cidade iluminada, veríamos o filme do cineasta desconhecido, descobriríamos um restaurante íntimo, escolheríamos o prato da casa, cruzaríamos a ponte e veríamos o barco pela proa.

E tudo mais. Tudo que você sempre quis:

Ouvir Indian Maracas, do Pelv’s. Dançar na batida do Bob Sinclair. Degustar o macarron da esquina. Ler a bíblia do Roberto Bolaño. Ver a exposição do Albuquerque Mendes. Assistir à montagem do Cyrano.  Ir ao show do Radiohead e não se conter na quarta música da lista. I wish I were special.

Se você estivesse aqui, eu teria evoluído.

Mas você não está.

Quando foi embora, deixou-me a culpa e o atraso.

Felipe Pena,  escritor, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense, é autor de onze livros, editora Record. Trabalha como roteirista de televisão, coordena o Grupo de Pesquisas em Teoria do Jornalismo da Intercom e ministra oficinas de crônicas na Estação das Letras, no Rio de Janeiro. Foi repórter da TV Manchete, comentarista da TVE-Brasil e sub-reitor da Unesa. É doutor em literatura pela PUC-Rio e tem pós-doutorado em Semiologia da Imagem pela Université de Paris/Sorbonne III. -  [email protected]