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Lágrimas por Mário Chamie

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         Numa das mais belas e tocantes metáforas do ato de viver, a Bíblia nos diz que “breve e triste é a nossa vida”, que “nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu” e que, “com o tempo, nosso nome cairá no esquecimento e ninguém se lembrará de nossas obras”.

         Nós, escritores, temos a ilusão de vencer esses limites. Por isso, os acadêmicos chamam-se a si mesmos imortais. Mas o que torna ou não imortais os escritores são suas obras, não eles!

         De todo modo, depois da partida para o mistério insondável do post mortem, restam a obra e a memória, às vezes eternas, de termos sido uma boa companhia no convívio entre os pares, como pessoa ou como livro, num mundo que de algum modo sempre segrega os escritores.

         Vivemos todos em campos de concentração. Cabe-nos torná-los menos hostis, já sabendo de antemão que às vezes somos nós os nossos principais inimigos, lutando uns contra os outros, sem a generosidade das almas modestas e negando a quem discrepa de nós o direito à discordância. Do contrário, de que valerão os endossos? Somos obrigados a dizer sempre sim, a todos os livros e autores, e se divergirmos seremos tomados como censores.

         Todos morreremos um dia, esta é a única certeza que temos. Defunctus quer dizer pronto em latim. Mas quem decide qual é a hora em que estamos prontos? Irrompe, misteriosa, repleta de sutis complexidades e contextos jamais imaginados, a fúria dos acasos.

         Essas reflexões surgiram quando tive os sentimentos desarrumados pela morte de Mário Chamie. Ele foi - e será doravante, ainda com mais intensidade e maior alcance - uma referência solar da literatura brasileira, notadamente no verso, mas também como doutor em letras e no ensaio. Foi tão grande que, não encontrando espaço suficiente em tantos desertos, fundou seu próprio oásis, o movimento literário ao qual chamou práxis.

         Nos dois territórios preferenciais de sua atuação, ele soube conciliar caminhos que se bifurcam: a criação própria, de sua lavra, e outros textos, de lavra alheia. Nas duas fontes sempre buscou a boa água.

         Como professor ou conferencista convidado, deu aulas e ministrou palestras em prestigiosas universidades. Teve também alunos famosos, como Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, seu discípulo em Harvard. Dele guardou uma coleção de cartas que este lhe enviara.

         Mário Chamie deu aulas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e foi locutor do programa 50 por 1, exibido pela TV Record e apresentado por Álvaro Garnero.

         Na galeria dos prêmios que lhe concederam         está o Prêmio Nacional de Poesia, pelo livro Os rodízios,  em 1958, em Porto Alegre. Também a Associação Paulista de Críticos de Arte (Apca) e a Portugal Telecom lhe concederam importantes prêmios literários.

         Suas realizações como administrador cultural, embora grandiosas e exuberantes, não tiveram o alcance que obtiveram as duas dimensões, provavelmente porque a política, sobretudo no Brasil, é um terreno pantanoso em que dificilmente o intelectual pode exercer o cargo com a mesma independência que é condição indispensável nos outros dois ofícios. E jamais sem algum tipo de restrição.

         Contudo, entre suas realizações em cargos políticos encontramos a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo.

         Como já disse no Facebook, certa vez me retirei de uma banca de concurso numa universidade porque estava tudo combinado entre quatro dos cinco membros para ele perder a única vaga em disputa. Por ter sido secretário de Cultura de Paulo Maluf ou de aliados dele, sequer tocaram nos livros e artigos que comprovavam seu vitae. O resultado é que meu gesto desconcertou tanto os outros membros que não aprovaram ninguém e foi feito novo concurso.

         Tudo passa, e passou isso também. Agora tenhamos de despedida versos como os que seguem, nos quais Mário Chamie mostra a alta qualidade de sua poesia no poema O tolo e o sábio: “O sábio que há em você/ não sabe o que sabe o tolo que não se vê./Sabe que não se vêo tolo que não sabe/ o que há de sábio em você./ Mas do tolo que há em você/ não sabe o sábio que você vê”.

Deonísio da Silva, escritor e doutor em letras pela USP, é pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá e diretor de Relacionamento.  Seus livros são publicados no Brasil pela Editora Leya e Novo Século