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O entretenimento como valor na literatura

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Em recente polêmica envolvendo uma crítica da professora Beatriz Resende ao seu último livro, o escritor João Ximenes Braga desabafou: "Críticos de cinema e música entendem que há espectadores e ouvintes com desejos diversificados. Chegamos aos livros e, danou-se, os acadêmicos e certos críticos que sempre falam em ‘a literatura’ com artigo definido, como se houvesse um único cânone a ser seguido, não fazem cerimônia em dizer que o leitor que não os obedece é burro ou pouco exigente".

Braga pondera que, pela premissa da crítica brasileira, dificilmente haveria uma versão brasileira contemporânea de fenômenos de qualidade e popularidade como o inglês Nick Hornby e o americano David Sedaris. Segundo ele, certos críticos locais os matariam no nascedouro e trucidariam sua linguagem simples, pois negam a possibilidade de uma literatura que não seja dirigida a uma casta de leitores que habita uma torre de marfim.

Concordo com ele. É fácil perceber que grande parte da nossa ficção é elitista e pretensiosa. Os autores (estou generalizando de propósito) não se preocupam com o principal, que é contar uma história. Alguns livros nem história têm, limitando-se ao experimentalismo linguístico.

Isso não significa, no entanto, que não sejam boa literatura. Pelo contrário, alguns são obras de arte de relevante valor. Só não são acessíveis. Eu, por exemplo, leio esses autores, mas tenho doutorado em literatura. Aliás, isso é parte do problema: a Academia e uma elite leitora convencionaram que só tem valor aquilo que está na elipse, que força o leitor a encontrar sentido onde poucos conseguem enxergar. Por essa premissa, o que é fácil de ler não tem valor literário. E quem discorda dela é taxado de superficial.

Para os doutores da Academia, entreter significa passar o tempo. É um termo pejorativo, aviltante, usado para diminuir uma obra. Mas não é o que ele significa para quem se envolve com um livro e não consegue largá-lo. Em literatura, entretenimento é sedução pela palavra escrita. É a capacidade de envolver o leitor, fazê-lo virar a página, emocioná-lo, transformá-lo.

Apesar da tão apregoada diversidade da prosa nacional, a crítica acadêmica dividiu-a em polos antagônicos. Quem não é moderninho, é superficial. E ponto final. Essa é a generalização leviana que produz distorções, afasta leitores e joga sua névoa sobre o mundo literário.

Em um mea-culpa corajoso, o crítico Tzvetan Todorov concluiu: “A história da literatura mostra bem: passa-se facilmente do formalismo ao niilismo ou vice-versa. (...) Numerosas obras contemporâneas ilustram essa concepção formalista de literatura; elas cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto, as simetrias, os ecos, os pequenos sinais cúmplices. (...) Para essa crítica, o universo representado no livro é autossuficiente, sem relação com o mundo exterior”.

Outro crítico de renome, o professor Émile Faguet, titular da cadeira de literatura francesa na Sorbonne, também vai pelo mesmo caminho no ensaio A arte de ler, quando dá a um capítulo o título de escritores obscuros: “Esses autores desfrutam sempre de enorme reputação. Têm um bando e um sub-bando de admiradores. O bando é composto por aqueles que fingem entendê-los, o sub-bando por aqueles que não ousam dizer que não os compreenderam e que, sem os lerem, declaram que são primorosos”.

Mas também há exemplos mais antigos. O irlandês C.S. Lewis, que morreu em 1963, dizia que a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Lewis era um defensor do leitor leigo, “comum”, ou seja, “aquele que lê sem nada esperar, que lê simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo”.

É em busca desse leitor que vai a literatura que considera o entretenimento como valor estético. E não custa repetir: entretenimento não é passatempo, é sedução pela palavra. É um conceito ao qual se deve atribuir fundamento artístico. É um termo que não pode ser rotulado ou tratado com preconceito. É um gênero cuja boa tecelagem está entre as mais difíceis e trabalhosas.

Tudo é linguagem, mas a narrativa é a base da literatura. A escrita simples não é superficial: é a tradução laboriosa da complexidade. Escrever fácil é muito difícil.

Felipe Pena é jornalista, psicólogo, autor-roteirista da TV Globo, romancista e professor da Universidade Federal Fluminense. Autor de 11 livros e dezenas de artigos científicos publicados no Brasil e no exterior, é doutor em literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado em semiologia da imagem pela Université de Paris/Sorbonne III.