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Mal estar contemporâneo, drogas e a medicalização da vida

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Pelos dados de estudos mundiais extraídos de pesquisas multicêntricas já vivemos uma pandemia global de adições dos mais variados gêneros. Em um canônico paper publicado na JAMA1 em 2000, já se mostrava a tendência que hoje se consolida. Só nos EUA calculava-se então em 67 bilhões de dólares os prejuízos à sociedade pelas adições e dependência de drogas, gerando criminalidade, absenteísmo, e mazelas circulares. Era o impacto econômico, e não as consequências sobre a vida dos sujeitos, que guiavam os Estados na construção de políticas públicas de saúde para combater as drogas. Somente no ano passado a “guerra às drogas” consumiu 100 bilhões de dólares da administração norte-americana. Conforme o debate foi apontando para a inviabilidade crônica de uma política exclusivamente baseada em ações repressivas o budget vêm se deslocando. A polêmica em torno da maconha pode ser emblemática, ainda que seja mera nota de rodapé se comparada ao tamanho do problema das drogas na sociedade contemporânea.

Ao estudar etimologicamente a palavra “droga” somos convidados a aceitar várias acepções. Isso amplia nossa capacidade de dialogar e enfocar melhor os problemas que temos pela frente. Droga, segundo Antenor Nascentes -- vem do neerlandes droogen, "seco" ou mercadoria enxuta, do persa “darú”, medicina e do grego trochisckos "pílula"e ainda do eslavo dorg, caro. Com tamanha polissemia, não podemos mesmo querer que seja matéria simples. Droga é medicamento, droga é cara, droga gera dependência, droga ao mesmo tempo significa medicamento, veneno, tóxico ou bálsamo. No sentido mais convencional droga é entendida hoje como um recurso que a medicina e a ciência dispõem para melhorar, aliviar, paliar e curar pessoas de seus padecimentos físicos ou psíquicos. E a ciência contemporânea progrediu muito nas tentativas de encontrar substâncias mais eficientes e abrangentes. Mas eis um campo onde – para desespero dos estatísticos - as generalizações são temerárias. Não se pode falar em drogas boas ou más. O mesmo se refere aos alimentos, pois que somos extraordinariamente heterogêneos em todos os sentidos.

Conforme a bíblia da terapêutica contemporânea "As Bases Farmacológicas da Terapêutica, de Goodmann & Gilmann", os verdadeiros efeitos de uma droga só serão realmente conhecidos quando ela for consumida em grande escala. "Este é o verdadeiro teste para os medicamentos", escreveram os autores logo na introdução. Não é a toa que efeitos colaterais sempre estão sendo ampliados nas bulas medicamentosas.

Drogas não só usadas para finalidades médicas ou como fonte de fuga, mas também diversão e amusement (na versão original, diversão com as musas). Elas podem até provocar inspiração literária. Thomas de Quincey narrou sua vida sob o ópio em Confissões de um comedor de ópio, Benoit Mure e Charles Baudelaire, usuários de hashish (cannabis índica) escreveram, este último Paraísos artificiais, sob sua influencia. Aldous Huxley, com a tutela de um psiquiatra amigo, relatou suas experiências com mescalina em As Portas da Percepção. Estes relatos tendem a romancear, mas são expressivas manifestações quando se trata de prestar tributos a uma substância.

Em várias sociedades as drogas fazem tão parte da cultura, que seria difícil, senão impossível, conceber uma vida comunitária sem elas. Para essas sociedades, o consumo têm um aspecto ritualístico, de cunho quase religioso. Expandem-se Igrejas e templos erguidos em núcleos urbanos, e rurais, especialmente em países ocidentais industrializados. Nelas, fiéis consomem ervas, cipós amazônicos, raízes e substâncias alucinógenas. O que isso significa? Como médico e pesquisador quando se trata de uso de drogas assusto-me frente apologias e proselitismos de qualquer espécie. Isso vai da maconha à assustadora escalada na prescrição de psicofármacos e aos poderosos estímulos à auto-medicação.

Isso porque seus efeitos são incrivelmente heterogêneos, devastadoramente dessemelhantes. Dependem do contexto, da sensibilidade, da suscetibilidade, das idiossincrasias. No caso específico da cannabis sativa, (ou maconha, parango, erva, marijuana, etc) se em alguns induz relaxamento, ampliação sensorial, diminuição das dores crônicas e alivio para os sintomas decorrentes da quimioterapia em outros, pode levar a um distúrbio severo, do déficit de atenção ao surto psicótico, acrescentando infertilidade, e perturbações cardio-circulatórias. Portanto, seria bom deixar um alerta claro: não existem drogas leves. Existem drogas potencialmente letais e menos letais, mais danosas e menos danosas. As substâncias medicinais usadas ou não para esta finalidade são todas perigosas e, acima de tudo, mal manejadas, especialmente nos grandes centros urbanos e nos balcões dos bares e farmácias. Aliás, alguém poderia se responder por que hoje em nosso País já contamos com mais farmácias (72.480) que padarias (48.000)?

Podemos estudar leis mais atuais, planejar melhor quais serão as políticas públicas nessa área. Uma discussão que deve ser feita longe da gritaria das arquibancadas. Mas já que alguém afirma ter resolvido cutucar tabús, aproveitemos para nos concentrar na questão central. Ninguém pode saber ao certo porque, nesse ponto da história, a sociedade busca entorpecimento e sedação em escala global e inédita. Como fenômeno está claro: a sociedade precisa narcotizar-se! Não será justamente o excesso de realidade aquele que gera a necessidade do refúgio prometido pelas drogas? Talvez seja o mal estar contemporâneo, pode ser a falta de significado. É cogitável pensar que seja um sintoma do esgotamento dos modelos sociais que não correspondem mais às nossas aspirações, sejam éticas ou estéticas?

O fenômeno está dado: a busca por um estado alterado de consciência governa esta pandemia. Sim, também é um problema de saúde coletiva, ainda que a abordagem exclusivamente neuropsiquiátrica do problema tenha sido um desastre. O verdadeiro tabu foi escancarado há tempos, quando alguém decidiu que deveríamos viver num império em que a vida precisa ser medicalizada. E sabemos que não há remédio para tudo. Se é que toda esta polêmica tem um sentido (e deve haver um) talvez seja trazer o debate sobre o consumo de drogas - e suas amplíssimas conseqUências - para o campo da filosofia, antropologia e da psicossociologia, arrancando-o, de vez, do campo penal. Isso seria um avanço. Quiçá o único.

Paulo Rosenbaum é Médico, PHd. pós-doutor em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Pesquisador associado da FMUSP e integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq - “Racionalidades Médicas” do IMS- UERJ. É também autor do romance A Verdade Lançada ao solo, (Editora Record).