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A novela em que o “gato” não é sinônimo de ator

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Diante de um telespectador irritado com a “falta de realidade” das novelas, certa vez Tony Ramos acabou tendo de confessar um segredo de Polichinelo: “nas novelas, o escritor que as produz conta um monte de mentiras”. É claro que essa frase de Tony Ramos ficaria melhor ainda se seguida do irônico “ohhh!”.

Digo isso para lembrar que concordo, em parte, com a reação do meu amigo Luiz Erlanger, jornalista da Rede Globo, sobre como é chato lidar com seitas anti-TV que cobram das novelas didatismos que, enfim, elas já têm até demais. Irritado, Erlanger escreveu esses dias contra os que ficaram furiosos contra a novela da Globo. Repito aqui as palavras dele: 

Na novela “Insensato coração” — uma peça do mundo da fantasia sem compromisso algum com o real — uma personagem grávida recusou-se a aproximar-se de um gato desconhecido temerosa de pegar doença. Foi o que bastou para que um comando xiita atacasse pelas mídias sociais a atriz, a Globo e a humanidade. Segundo esses radicais da seita dos adoradores de gatos, bichanos de estimação passariam a ser largados, execrados pela nossa sociedade por conta de frase de teledramaturgia.

Até aí, nada de mais, parece que Erlanger tem lá sua razão.Erlanger está do lado do seu empregador, mas, tenho certeza, manifesta-seantes por opinião própria que para garantir o emprego. Todavia, na sequência, ele diz uma frase não tão boa quanto os seus outros argumentos. Após lembrar que um macaco atacou um carro e não foi punido, ele também conta que se houver um confronto entre animais e humanos ele ficaria com os seus semelhantes, ou seja, os humanos. É nisso que o argumento pró-Globo escorrega.

Não há confronto entre animais e humanos. Quando há, ele é sempre criado pelos humanos. Por uma razão simples: um cão não ataca outros por sua decisão, ele ataca quando criado sob as regras humanas não condizentes com a vida do cão; um macaco não ataca um carro e então deve ser punido, pois um macaco não é “sujeito de direitos”, só os humanos são tomados como responsáveis; e um gato que causa doenças, todos nós sabemos, é uma coisa muito burra de ser ouvida, pois uma grávida que se afasta de um gato deveria se afastar de todos, se colocando numa daquelas bolhas de isolamento do Michael Jackson. 

Sendo assim, os que falaram contra a frase da novela, que estaria criando uma noção nos jovens de repúdio dos animais – dado que se atribui à TV uma força maior do que ela tem – deveriam, em uma melhor avaliação, apenas ter escrito para a Rede Globo do seguinte modo: “não mudem a novela, mas, se puderem, em outro momento, façam todos verem que a personagem grávida que não quis pegar o gato é uma besta”. Sim, pois ela é uma besta. Isso não seria didatismo maior do que os que as novelas da Globo já promovem de vez em quando. Afinal, em termos de didatismo que estraga uma novela, a Globo só não é campeã porque há aquela coisa lá do “Amor e Revolução” do SBT. Então, didatismo por didatismo, seria mais interessante colocar um contraponto na novela, a favor do gato, o que não significaria se colocar ao lado dos semelhantes de Erlanger, os autodenominados “humanos” e “racionais”. Pois, afinal, não estamos em guerra na Terra senão entre humanos versus humanos. 

O que eu escrevi pessoalmente para o Erlanger é que talvez tenhamos de deixar de lado a militância anti-Globo de certos manifestantes que criticaram a novela e, então, começarmos a levar em conta o conteúdo da mensagem deles, para além da lateralidade tola. E aí eu citei o caso chinês. Na China optou-se, quando da invenção do confronto entre cães e humanos, pela solução bárbara de assassinato dos cães, em massa. Assim, em relação a habitantes que estavam em casa, e em relação aos quais se prometia proteção, veio a traição noturna e o destempero de uma semana de sangue e cultivo à crueldade. Os cães foram chacinados. O resultado disso, segundo estudiosos, foi que os chineses ficaram muito mais condescendentes com a repressão política após isso, achando que também no confronto entre seres humanos uma única saída pode ser a crueldade.

É em relação a isso que os militantes que defendem animais também aludem. Podemos amar nossos cachorros, mas, se não aprendermos que eles são seres da superfície da Terra e que nós somos responsáveis pelo bem estar deles tanto quanto somos de nossos filhos ditos humanos, nosso amor será uma farsa. Aprender a amar só quando convém é aprender a não amar. Aprender a amar é usar da inteligência de modo a não fazer alguém fugir de um gato por meio de uma mentira, a de que gato passa mais doença que qualquer outro ator da Globo pode passar numa cena qualquer, que nem precisa ser de beijo. 

Só aprenderemos a nos chamar de humanos com alguma legitimidade quando percebermos que os animais são de nossa responsabilidade e amor tanto quanto nossas crias. Só aprenderemos a fazer novelas interessantes quando deixarmos de colocar na tela só personagens burrinhos, mas contracenando-os com alguns inteligentes que os venham corrigir quando de uma bobagem dessas, sobre manter distância de gato em gravidez ou qualquer outro estado. 

* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ.