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Mesmo nações alheias ao cristianismo mostram interesse em ter contato com o sucessor de Pedro

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Certa ocasião, fui solicitado a dar um depoimento à BBC de Londres sobre O legado do Concílio Vaticano II. A equipe percorreu vários continentes para preparar um vasto material.

Eis algumas reflexões sobre os resultados do Concílio, essa memorável reunião que se estendeu de 1962 a 1965. Decorridos vários anos, são muitos ainda os que desconhecem tão importantes e decisivos documentos que determinaram os rumos eclesiais na fase final do milênio. 

Constato profundas mudanças na aceitação, pelo meio profano, da obra de Cristo. Ela é hoje vista pelo mundo com mais simpatia, apesar de ainda perdurarem perseguições. Pode mesmo ter crescido em algumas áreas um clima anticlerical. No entanto, o saldo é positivo. O fato de haver inúmeras representações diplomáticas junto à Santa Sé mostra o interesse das nações, mesmo inteiramente alheias ao cristianismo, em ter um contato com o sucessor de Pedro.

A abertura às realidades terrenas, saindo de um âmbito interno e sacral, se revela nas primeiras palavras de um dos mais valiosos documentos conciliares, a constituição pastoral Gaudium et spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (nº1).

De grande valia e repercussão é o reconhecimento de que essa atitude decorre da encarnação de Deus. No passado, foi menor a atenção aos aspectos seculares da missão confiada por Cristo aos apóstolos. A ordem divina é de total compreensão por parte da comunidade dos fiéis a tudo o que é realmente humano: as aspirações de nosso coração, as conquistas no campo das ciências, da técnica, os fracassos, como as guerras, drogas, corrupção, doenças. Sem ceder em sua estrita identidade religiosa e preservando-a fielmente, a Igreja se conserva aberta a todos os homens, seus sucessos e derrotas, levando em todas as circunstâncias a mensagem salvífica de Cristo, respeitada a liberdade de consciência de cada um.

A partir do século 18, aparece a absoluta exaltação da ciência e, no seguinte, a da técnica. A seguir, os grandes sucessos da inteligência humana. O progresso fantástico, que continua, não é capaz de resolver problemas que afligem a Humanidade. A fome aí está. Fracassos convivem com os êxitos, sem haver sinais de uma solução que beneficie os povos.

O Concílio é a resposta da Igreja ao homem de hoje. Sua dignidade depende da importância que é dada à ética no relacionamento social e na vida pessoal. Contudo, essas diretrizes somente terão validade na formação da consciência individual e coletiva se forem alicerçadas na fé e não apenas na razão humana. Por isso, “a Igreja crê que não foi dado aos homens sob o céu outro nome no qual devamos ser salvos (...). O Concílio pretende (...) cooperar na descoberta da solução dos principais problemas de nosso tempo” (Gaudium et spes, nº 10).

Em nome do Cristo Jesus, o Vaticano II nos enviou a dialogar com todas as realidades terrestres. Não pode ser um encontro entre surdos. A Igreja quer ouvir, aprender dos conhecimentos da Humanidade com suas esperanças e angústias, sucessos e limitações. E também dos cientistas, técnicos, políticos, assim como da experiência e da sabedoria dos pequenos e humildes. De outro lado, ela quer também falar ao profano. Possui uma mensagem para as mais profundas interrogações de nossos corações. O ensino de Cristo é de confiança, perdão, amor, serviço. Comunica uma certeza: a cruz do Calvário abre para todos uma outra vida e, como dom gratuito, a ressurreição de Cristo assegura a nossa no final dos tempos. Essas verdades jamais poderão ser omitidas, mas propostas a cada criatura.

A providencial e extraordinária abertura da Igreja ao temporal nem sempre ocorreu isenta de falhas e desvios. O Povo de Deus, em sua prática religiosa, na vivência cotidiana à luz da fé, tornou-se mais simples e próximo aos pobres. Os testemunhos concretos, felizmente, são muitos. Como é natural, houve atitudes e posições equivocadas. 

Voltaremos ao assunto para ver o pós-Concílio dentro da própria Igreja, assim como os deslizes, por culpa dos indivíduos que não quiseram seguir as luzes do Espírito Santo, transmitidas pelo Magistério eclesiástico.

* arcebispo emérito do Rio de Janeiro