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Há 50 anos, 28 pessoas morriam em protesto contra a ditadura, que levaria à Passeata dos Cem Mil

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“Deixou de ser uma manifestação estudantil, virou uma insurreição popular”. Assim Jean Marc von der Weid define a Sexta-feira Sangrenta, como ficou conhecida a matança ocorrida há 50 anos, no dia 21 de junho de 1968, que deixou no Centro da cidade um débito do Brasil com sua história de 28 mortos — 27 civis e um policial, morto por um balde de cimento lançado do alto de um prédio. Weid, então com 22 anos, presidia o diretório de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e fora detido quatro dias antes, ao fim de uma passeata estudantil.

“Fiquei preso até 24 de julho no quartel da Infantaria Blindada, em São Cristóvão. Passava o dia encostado e era atualizado do que acontecia pelos soldados. Naquele dia, eles disseram: ‘O povo está botando para quebrar no Centro, o Exército vai intervir com o pelotão de Choque de vários batalhões’. De noite, me levaram para o comando do batalhão, de onde assisti ao que acontecia pela televisão. Jogavam cadeiras, lixo, vinha de tudo do alto dos prédios, a população se rebelou. A guerra civil só cessou com a chegada do Exército já de noite, quando as pessoas começaram a se dispersar”, relata o ex-líder estudantil, engenheiro químico e economista agrícola, que presidiu a UNE de 1969 a 1971 e se especializou em planejamento participativo e desenvolvimento sustentável. 

Sua prisão aconteceu em 18 de junho de 1968. No dia seguinte, um novo ato foi reprimido com violência pelos policiais. Em 20 de junho, centenas de universitários se concentraram no Teatro de Arena da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRJ e reivindicaram um debate sobre o ensino superior com o reitor e o Conselho Universitário. Ao sair de lá, sofreram violenta repressão a golpes de cassetete e tiros. Houve mais de 300 prisões, e os estudantes foram levados ao campo do Botafogo, na Rua Genera Severiano, próximo ao campusa da Praia Vermelha, da UFRJ, onde foram humilhados e espancados.

Na manhã da sexta-feira 21, uma nova passeata de estudantes protestou contra a repressão no Centro do Rio. Em reação às investidas policiais, tal qual Davi e Golias, os jovens enfrentaram a cavalaria com rolhas e bolas de gude, que fizeram tombar os cavalos. Nisso, a população tomou o partido dos estudantes e se uniu a eles nos ataques à pedra contra a polícia. Objetos eram arremessados do alto dos prédios sobre os soldados, que reagiam a tiros. Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas de helicópteros. Entre o fim da manhã e a tarde, o conflito se espalhou feito rastilho de pólvora por uma extensa área do Centro. A batalha prosseguiu até o início da noite e, além dos 28 mortos, deixou centenas de pessoas feridas. Foram mais de mil presos e 15 viaturas incendiadas naquele dia.

O produtor Luís Carlos Barreto, hoje com 90 anos, acompanhou de perto os acontecimentos. “A morte do estudante Edson Luís, três meses antes, já havia deflagrado uma revolta muito grande na população, sobretudo no meio estudantil, e acarretou uma série de focos de agitação. Na noite da Sexta-Feira Sangrenta, eu estava com Glauber Rocha e outros intelectuais num restaurante da Cinelândia, quando chegaram policiais lançando gás lacrimogêneo, e o lugar virou uma verdadeira praça de guerra. Percebemos que tínhamos de fazer alguma coisa contra aquela repressão descabida”, lembra.

No dia seguinte, Barreto, Glauber, Sinval Palmeira, sogro de Zelito Vianna e membro do PCB, além de outros participantes do circuito do Cinema Novo, foram à igreja do Leme onde o Frei Secondi se reunia com lideranças estudantis. “Percebemos que era necessário juntar os grupos, que agiam isoladamente. Dessa reunião, surgiu a organização da Passeata dos 100 Mil”, recorda Barreto. O vínculo entre a Difilm, distribuidora dos filmes de vários diretores do Cinema Novo, com o movimento estudantil era Ana Maria Franco Ribas, então casada com Vladimir Palmeira. 

Prisões e arbitrariedade eram as marcas da ação do governo militar em relação às crescentes manifestações de protesto dos estudantes contra a ditadura. Em 28 de  março de 1968, o aluno secundarista Edson Luís de Lima Souto foi assassinado, aos 18 anos, com um tiro a queima-roupa no peito, desferido pelo aspirante Aloísio Raposo, comandante da tropa da PM que havia invadido o restaurante universitário Calabouço, onde os estudantes protestavam contra o aumento do preço das refeições. 

Para von der Weid, uma coisa é certa: não fosse a Sexta-Feira Sangrenta, não haveria a Passeata dos Cem Mil, a histórica manifestação popular contra a ditadura militar no Rio, cinco dias depois.