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Largo do Boticário passa por reformas e vai abrigar hostel, bares e restaurantes

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Tudo começou quando o empresário francês Eric Chabanel comprou a casa nº 32 do Largo do Boticário, em 2013. Desde então, tiveram início as costuras que culminaram no projeto anunciado, ontem, pelo CEO da rede francesa AccorHotels, na América do Sul, Patrick Mendes: no segundo semestre de 2020, será inaugurado o primeiro Jo&Joe Open House da América do Sul, que vai ocupar as seis casas do Largo do Boticário, no Cosme Velho, hoje caindo aos pedaços. Tombados em 1987 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), os imóveis foram adquiridos pela rede, que já opera 35 hotéis no Rio, por R$ 20 milhões. O projeto prevê investimentos de R$ 30 milhões, capital da própria Accor, sem participação de incentivos fiscais.

Espécie de selo da rede, a Jo&Joe insere o projeto num estilo de vida “cool”, um espaço aberto de convivência mais voltado ao público jovem, sem deixar os coroas de lado, com 350 camas em 70 quartos  e apartamentos — de R$ 40 a R$ 100 por cama, com café da manhã —, com capacidade para até 300 pessoas. Uma das atrações será um grande bar, aberto até as 2h da manhã, além de espaços de convivência, de coworking, restaurantes, barbeiro, piscinas, área para churrasco compartilhado e bar de sucos. Há opções para alojar grupos de amigos, famílias e casais que buscam privacidade. “O projeto vai se voltar a dois segmentos: os viajantes e, sobretudo, os cariocas. Não será um hotel, mas um lugar de vida, de experiência”, explicou François Leclerc, responsável pelo Jo&Joe, em entrevista coletiva realizada ontem no Sofitel Ipanema, da mesma rede.

Mais de 50% dos investimentos destinam-se às áreas de convivência, como bares e restaurantes. Serão abertas de 80 a 100 vagas para a mão de obra local, com prioridade para cariocas. “Será um cast de jovens descolados, que poderiam ser amigos dos clientes”, descreve Leclerc. 

O conceito do projeto foi desenvolvido pela empresa Lakasa Development Empreendimentos — na qual trabalha Eric Chabanel — e o escritório de arquitetura Ernani Freire & Associados. “São 3.500m² de área construída, numa superfície de 6.000 m² da melhor qualidade, um espaço urbano charmoso, aconchegante, ocupado de forma saudável e eficiente”, define Freire. “Nossa intenção é criar um novo ponto turístico na cidade”, afirma Patrick Mendes, que prefere “desdramatizar” a violência do Rio. “Vivo há seis anos na cidade, e nunca me aconteceu nada. Semana passada, estive em Nova York, e roubaram meu celular. Lá fora, a imagem da cidade não é tão ruim quanto a que existe aqui”, avalia.

Ou seja, a rede vai oferecer um espaço aberto à população e aos clientes, com a devida segurança interna. E o clima carioca parece mesmo ter contaminado os franceses: durante a visita ao Largo do Boticário havia um cobertor arejando na sacada da casa 28, onde mora a pessoa que vai cuidar do espaço até o início das obras, previstas para começar no fim do ano. Conforme o arquiteto Ernane Freire, será um espaço que vai irradiar melhorias no bairro para estimular a revitalização da vizinhança, que acaba de perder o Museu Naif e ganhou o centro cultural Casa Roberto Marinho. “Será o que definiu o arquiteto catalão, Oriol Bohigas, ‘a metástase positiva”’, planeja.

O museu, por sinal, foi fechado pela negativa da prefeitura para o proprietário explorar, como restaurante, a casa em frente à estação de trem. A Casa Roberto Marinho, por sua vez,  só foi aberta porque o projeto alegou  uso educacional. O nó do bairro é sua classificação como Z1, que proíbe qualquer atividade comercial, barreira ultrapassada pela Accor com a a provação da Lei Complementar 183, da Câmara de Vereadores, que autorizou a mudança de uso e a transformação dos imóveis do Beco e do Largo do Boticário. 

O projeto avançou com a saída, há cerca de um mês, da proprietária Sybil Bittencourt, 94 anos, herdeira de Sylvia Bittencourt. Segundo relatos, Sybil, ainda lúcida, ocupava o segundo piso da casa 26, uma das mais icônicas do largo, que se destaca por seu conjunto de azulejos e cor amarela. Ela vivia em condições precárias e convivia com os invasores que ocupavam o primeiro piso da casa. Deve ter sido dela a cortina azul com margaridas amarelas que pende do segundo andar.       

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Águas curativas

O boticário, que hoje seria um farmacêutico, Joaquim Luís da Silva Souto, estabelecido na Rua Direita nº 8 (1 de Março), vendia a água ferruginosa do Rio Carioca, coletada de uma bica em frente ao último prédio da Rua Cosme Velho, água  considerada boa para a saúde. No século 19, o proprietário do prédio em frente reclamou do abandono e do lixo jogado ali, e a bica foi extinta.

Bem sucedido, Joaquim, que tinha entre seus clientes a família real, resolveu fazer um empreendimento imobiliário no Cosme Velho, cujas qualidades eram o bucólico ambiente, o privilégio de apreciar o verde do bairro, a beleza e a boa qualidade das águas do Rio Carioca, hoje fétidas. Para isso, comprou o terreno, onde abriu um largo e construiu cinco casas para aluguel, em 1822, concluídas em 1830. Daí o nome Largo do Boticário. Foi o primeiro empreendimento imobiliário adequado ao ambiente, ecológico e sustentável. 

Cerca de dez anos depois, as casas foram vendidas pelos herdeiros do boticário. Foi a proprietária de quatro das seis casas, Sylvia Botelho de Bittencourt — casada com Paulo Bittencourt, herdeiro  do jornal “Correio da Manhã” — quem encomendou um projeto ao arquiteto Lúcio Costa para seus imóveis. Este modificou as fachadas, sem alterar a concepção do projeto original, e usou elementos de construções demolidas nas obras de reforma do Centro da cidade. O resultado foi um projeto neocolonial, com elementos da arquitetura eclética. As informações são do historiador Nireu Cavalcanti, que tem um projeto de criação de um caminho ao longo do Rio Carioca, alvo de um processo de tombamento no Inepac.