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Intervenção sob fogo cruzado: aplicativo constata que número de tiroteios cresceu

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O pequeno Caíque de Carvalho, de 6 meses, tinha apenas 90 dias de vida quando a intervenção federal na segurança do Rio desembarcou na capital com soldados das Forças Armadas. Às vésperas de dobrar sua tenra idade, nem ele nem seus pais podiam imaginar que, na noite de segunda-feira, o bebê pudesse acabar simbolizando o fracasso da medida extrema adotada pelo presidente da República, Michel Temer, em fevereiro passado. Ontem, enquanto os militares riscavam no calendário a quarta-feira que fechou o primeiro trimestre de operações no estado, o neném continuava internado na UTI do Centro Pediátrico da Lagoa, na Zona Sul do Rio. 

Os médicos dizem que o estado de saúde de Caíque é bom, e ele já movimenta normalmente pernas e braços, após a cirurgia de duas horas realizada na terça-feira para a retirada da bala que o atingiu no ombro, quando estava no colo da mãe, no pátio do Colégio São Vicente, no Cosme Velho, aguardando o fim da aula de futebol do irmão mais velho, de 6 anos, para voltar para casa. 

Ele foi a décima quinta criança alvejada em 2018 no Rio, segundo o Fogo Cruzado — serviço que analisa dados da violência armada e os disponibiliza por meio de um aplicativo e de um mapa colaborativo. E entrou para uma triste estatística que, infelizmente, piorou ainda mais com a intervenção federal: segundo o aplicativo, nos últimos três meses foram registrados 2.309 tiroteios ou disparos de arma de fogo na Região Metropolitana, uma média de 25,9 por dia e um aumento de 25,3% em relação aos três meses anteriores (1842 casos). 

A má notícia não para aí. O número de mortos foi 393, e o de feridos, 302; no período anterior, haviam sido registrados 390 mortos e 377 feridos. Os dados foram divulgados ontem — dia em que a intervenção completou três meses no Rio. 

No período de 16 de fevereiro a 15 de maio, a maior parte dos tiroteios/disparos, 1387, se concentrou no município do Rio, justamente onde foram realizadas as operações da intervenção, em sua maioria. 

Os bairros da Região Metropolitana que tiveram mais notificações são Praça Seca (100 registros), Cidade de Deus, Rocinha (ambas com 68), Complexo do Alemão (65) e Vila Kennedy (63). Esta última comunidade recebeu uma série de operações das Forças Armadas e da polícia, com derrubada de barricadas impostas pelo tráfico de drogas para evitar o trânsito de forças de segurança. Os tiroteios e disparos em áreas de Unidades de Polícia Pacificadora somaram 538 no período, seis por dia, com 44 mortos e 44 feridos. As mais violentas: Cidade de Deus, Rocinha, Alemão, Vila Kennedy e Complexo de São Carlos. 

O Fogo Cruzado também compila dados sobre a presença policial nos momentos dos tiroteios/disparos - por exemplo, se havia operação em andamento ou se foi o caso de um policial assaltado, com reação a tiros. Dos 2.309 registros, a presença se verificou em 350 casos. Depois do Rio, os municípios com mais tiroteios de fevereiro até aqui foram São Gonçalo (236), Belford Roxo (177), Niterói (122) e Nova Iguaçu (106), mostrou o levantamento. A Secretaria de Segurança Pública não comentou o levantamento do Fogo Cruzado, tampouco o gabinete de intervenção. 

Reconstituição 

Ninguém relatou ter ouvido tiroteio próximo da escola, e a polícia ainda não sabe de onde partiu o disparo. O colégio fica a um quilômetro da Favela do Cerro Corá, mas não havia troca de tiros na comunidade no momento da ocorrência, segundo policiais. A escola também afirmou que não houve registro de ações envolvendo tiros no entorno. Ainda não se sabe de qual tipo de armamento veio o projétil. 

Um projétil deflagrado foi encontrado, ontem à tarde, na calçada em frente ao colégio, onde a Polícia Civil realizou uma reconstituição para tentar determinar de onde veio a bala que atingiu o bebê. A bala deflagrada foi achada por um fotógrafo que tentava registrar a reprodução simulada, à qual os jornalistas não tiveram acesso. Pouco depois da simulação, que durou cerca de 1 hora e 20 minutos, um policial retornou para recolher o projétil. Não foi possível dizer, ainda, se a munição usada tem relação com o ferimento sofrido por Caíque. A Polícia não divulgou oficialmente nenhuma informação, nem comentou o achado. 

A mãe da criança, Tatiana Rosenthal, participou da reconstituição. Os agentes utilizaram um boneco de pano para simular o bebê. Os agentes, que chegaram e saíram em três viaturas (uma delas descaracterizada), não falaram com os jornalistas. As aulas no colégio transcorreram normalmente. O pai do garoto, Carlos Figueiredo, desabou em uma rede social contra a violência no Estado. “Nem na escola e no aconchegante colo da mãe nossos filhos estão livres do perigo”, escreveu Figueiredo. 

Após se recuperar da cirurgia na UTI, ele deverá ir para um quarto. “A bala entrou pelo ombro e se alojou perto da medula, daí os cuidados para retirá-la”, afirmou Gina Sgorlon, diretora do Prontobaby, rede que controla o Centro Pediátrico. (Com Estadão Conteúdo)