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200 anos do Museu Nacional

A mais antiga instituição científica do país será gratuita aos segundos domingos do mês

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Mais antiga instituição científica do país, o Museu Nacional se prepara para comemorar seu bicentenário. Fundado em 6 de junho de 1818 como Museu Real, no Campo de Santana, no Centro, sua sede foi transferida em 1892 para o Paço da Imperial Quinta da Boavista, em São Cristóvão, na Zona Norte. O primeiro passo é um presente aos visitantes: a entrada será gratuita aos segundos domingos do mês, o que vai permitir às mamães celebrarem sua data levando a família para conhecer a antiga residência da família imperial brasileira e seu acervo, de mais de 20 milhões de itens.

Quem vê o palácio de fora, com área total de 13.920 m² (o equivalente a dois campos oficiais de futebol) e três pavimentos, encontra uma aparência renovada pela recente reforma que resgatou o original bege amarelado à imponente fachada. Do lado de dentro, porém, salta aos olhos a falta de recursos que contribui para a permanência de goteiras, paredes descascadas, rebocos sob o risco de cair e invasões de cupins. Apesar da riqueza do acervo, as exposições continuam dignas dos séculos passados. Não há interatividade entre as peças e os visitantes, como ocorre em qualquer museu contemporâneo. Os estrangeiros não dispõem de textos explicativos bilíngues. E, se chegar alguém com problema de locomoção, terá de esperar até que a guarda municipal apareça em seu carrinho elétrico para abrir a fechadura das cancelas.

A maior parte desses problemas pode estar com os dias contados, no que depender dos resultados dos projetos previstos pelo novo diretor do Museu Nacional, o paleontólogo carioca Alexander Kellner, 55 anos, que chegou ao cargo máximo da instituição onde trabalha há 30 anos com o objetivo de “mudar”. Para ele, resgatar a importância do museu é um desafio maior do que as pesquisas que desenvolve desde 2004, na China, sobre répteis alados do período Mesozóico (entre 251 milhões e 66,5 milhões de anos), os pteurosauros, no melhor estilo Indiana Jones. “Este trabalho, só nas férias”, avisa. “Minha dedicação ao museu será integral. Por que os brasileiros têm de viajar para o exterior para conhecer um museu de história natural de qualidade?”, indaga ele, que pretende dar uma resposta positiva a esse desafio nos próximos quatros anos de sua gestão.

Basta acompanhar os índices de visitação para constatar que há algo de errado com a instituição. Em 2017, foram 210 mil visitantes, enquanto relatórios de 60 anos atrás contabilizam a presença de até 350 mil pagantes. “Até o fim da minha gestão serão um milhão”, planeja Kellner, sem falsa modéstia, porque acredita nas reais possibilidades deste salto de qualidade. Ele mesmo já foi peça fundamental na experiência que mudou a história do Museu Nacional, a exposição “No tempo dos dinossauros”, de 1997. “Ganhamos mais visitantes, mais respeito, mais recursos e melhores convênios. Mudou tudo”, sintetiza.

Agora, o processo apenas engatinha. Hoje, o museu abriga 225 funcionários, 90 professores e mais de 500 alunos de pós-graduação. A incorporação à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1946, deveria render à instituição um orçamento anual de R$ 515 mil em três parcelas. No entanto, o valor que chega não passa de R$ 300 mil. Kellner também anuncia para este mês de maio, ainda sem dia definido, uma exposição com as magníficas fantasias que a Imperatriz Leopoldinense levou à Marquês de Sapucaí em seu desfile, “Uma noite real no Museu Nacional”, oitavo lugar no ranking do desfile das Escolas de Samba de 2018. É o tipo da inciativa de custo baixíssimo em que ele aposta, com potencial para atrair multidões.

A inspiração em Leopoldina não podia ser mais pertinente. Como D. João VI fazia qualquer coisa para agradar a nora, assinou o decreto de criação do Museu Real em 1818. Estudiosa de ciências naturais, a esposa de D. Pedro I , ela sabia a importância que a ciência poderia desempenhar no desenvolvimento da capital além-mar do império português. Leopoldina também se interessava por botânica e mineralogia, e o museu que nascia recorreu a acervos já existentes, como o da Casa dos Pássaros, entreposto da colônia onde os taxidermistas da época depositavam suas peças.

Revitalização

A revitalização do Museu Nacional se baseia em uma proposta com 11 itens da Associação de Amigos do Museu, da direção, e das diretorias técnico-científica e administrativa. Uma delas é começar uma campanha de crowdfunding para botar de pé o Dinoprata. Com isso, poderá ser reaberta a Sala dos Dinossauros, no segundo piso do museu. A abertura deve ocorrer antes do bicentenário, em 6 de junho. A escolha de Kellner por ocupar os aposentos dos imperadores, fechados há 15 anos, tem uma razão de ser: chamar a atenção sobre a degradação do espaço, com paredes descascadas, como a que escolheu para posicionar sua mesa, entre dois pares de vitrais italianos (Tasso e Eleonora e Dante e Beatriz), também necessitados de restauração.

Depois de recuperar os cômodos imperiais e outras salas históricas ainda fechadas, seu sonho é criar o Circuito das Salas Históricas do Paço e oferecer pantufas nas visitas guiadas, como ocorre com o Museu Imperial de Petrópolis. Já há verbas e convênios prometidos, porém, como nada foi assinado ainda,  ele prefere preservar os nomes dos possíveis interessados. Vale lembrar que qualquer iniciativa terá de ser acompanhada pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), que tombou o imóvel em 1938.

Para qualquer projeto, como o de ampliar os atuais 3.000m² de área de exposição para 10.000m² — o que não será difícil com a incorporação do terceiro piso —, o passo seguinte é conseguir a doação pelo governo federal de um terreno de 40.000m², usado como estacionamento durante as Olimpíadas, contíguo à área externa do museu, para alojar a administração e parte do acervo. “Sem isso, não poderemos fazer muito, porque é impossível qualquer reforma ou restauração, sem remover o pessoal e parte do acervo”, pondera. Os novos prédios passariam a alojar os departamentos de Entomologia e Invertebrados, entre outros, além dos laboratórios e reserva técnica das coleções. Para discutir esta e outras propostas, o deputado federal Celso Pansera (PT-RJ) solicitou audiência pública à Comissão de Educação do Congresso Nacional, ainda sem resposta.

A monumental sala onde está escondida a baleia jubarte, de 13m, fechada há 20 anos, ganhará uma instalação suspensa, cercada por mezaninos que permitam a interação do público com o esqueleto do mamífero marinho. “Pretendo promover nesta mesma sala um jantar beneficente com potenciais doadores para levar esse projeto à frente”, diz Kellner. Ele quer atrair a atenção do setor privado para a descupinização do imóvel e de peças, porque o contrato existente expirou. “Poderíamos sensibilizar um pool de empresas para assumir essa tarefa, sem ônus para o museu”, especula. Setores do próprio prédio seriam turbinados por pequenas iniciativas, como a cobertura da escada monumental e a reabertura do Jardim das Princesas. 

Pérolas do acervo 

Quando decidiu criar o Museu Nacional, D. João VI também conseguiu adquirir uma base classificatória dos minerais de diferentes regiões europeias, cobiçada por Napoleão Bonaparte, atualmente em exposição. O monarca doou ao museu preciosidades da própria família, como a taça-cofre de ouro, “Batalha de Constantino”, encimada por uma escultura em coral, guardada no cofre. Daí em diante, foram 200 anos para acumular um fabuloso acervo, que inclui o primeiro dinossauro de grande porte montado no Brasil, em 2006, o “Dinoprata”, um Maxakalisaurus Topai com 13,5m de extensão, herbívoro do período Cretáceo (há 80 milhões de anos), proveniente da cidade de Prata, em Minas Gerais. Ele está desmontado por conta dos cupins que corroeram sua base.

Outro motivo de grande curiosidade é o mais antigo fóssil humano já encontrado no país, no início da década de 70, na região de Lapa Vermelha, em Minas Gerais, batizada de “Luzia” pelo filólogo Walter Neves. Trata-se de uma mulher cuja reconstituição em 3D revelou um rosto negro, com cerca de 12.500 a 13 mil anos de existência. Os pedaços do crânio e da mandíbula encontrados nas escavações também estão guardados em cofre. O visitante vê a reconstituição do rosto em três dimensões. Luzia disputa com as múmias o interesse do público, sobretudo a de Kherina. Além de ter os seios, quadril e barriga modelados por enchimentos, ela mantém os membros enfaixados separadamente, o que permite a impressionante visão do esqueleto de seus pés. Há relatos de visitantes hipnotizados por Kherina, arrematada em leilão por D.

Pedro I em 1827, com as múmias Hori e Harsiese. Diz a história que as múmias e as cerca de 700 peças do Egito Antigo do acervo eram destinadas à Argentina, porém, como havia uma guerra na região, acabaram desviadas para o Rio de Janeiro. Foi José Bonifácio de Andrade e Silva quem alertou o imperador sobre o leilão. Por sua vez, quando Pedro II viajou pelo Egito, entre 1876 e 1877, foi presenteado com um sarcófago onde descansava a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, que viveu em 2.800 anos AC. É o único do mundo até hoje nunca aberto.

Palácio de tristes memórias

Agora que o novo diretor se mudou para os aposentos que pertenceram à família real, curiosidades pinçadas por historiadores vêm à tona. A começar pela doação do imóvel a Dom João VI pelo traficante de escravos Elias Antonio Lopes, como registrou Laurentino Gomes em seu “1808”. Que favores reais teriam sido concedidos para recompensar tanta gentileza? Nunca saberemos. A adição de pimenta cresce na gestão de D. Pedro I. A vida do monarca mudou com a chegada ao Rio de Domitila de Castro Canto e Melo, em 1822. A fogosa paulista de cabelos castanhos não demorou a se tornar a favorita da coleção de amantes do imperador, a tal ponto que ele a transferiu para um luxuoso palacete encostado ao muro do Palácio da Quinta da Boa Vista, hoje sede do Museu do Primeiro Reinado. O relato está em “1822”, de Laurentino Gomes, reproduzido pelo historiador Alberto Rangel: “Nos aposentos do imperador existiria uma saída secreta pela qual ele escapava durante a noite para se encontrar às escondidas com a amante”. Kellner descarta a hipótese, “no máximo havia uma estrebaria para que ele pudesse ir ao encontro da amada a cavalo”, especula.

Já Mary del Priori dá fundamentos à paixão de D. Pedro I por Domitila em “A carne e o sangue”: “Não podendo pelo verdadeiro e sincero amor que lhe tenho deixar de procurar todas as ocasiões a te ver”. Vigiava a amante através de um binóculo. Digladiavam-se em ciumeiras: “Eu já não namoro mais ninguém depois que lhe dei minha palavra de honra (...)”. Em outubro, o imperador assinou o título que ascendia a já viscondessa de Santos a marquesa, “por merecimento próprio”. Para Leopoldina era o que bastava. No dia 23 do mesmo mês, ela pediu que fosse comunicado a seu pai: era extremamente infeliz. Conforme reproduz Gomes em “1808”, o cronista francês Étienne Victor Arago, que esteve no Rio entre 1817 e 1820 a bordo da corveta Uranie, relatou sua impressão sobre a rainha Carlota Joaquina, mulher de D.

João VI, em recepção no Paço São Cristóvão: “Vestia-se como uma cigana, dentro de uma espécie de camisola toda pregada com alfinetes. Os cabelos despenteados, em fúria, viúvos de pente, atestavam a ausência de um cabeleireiro no paço ou de um zeloso camarista”. Ainda segundo “1808”, o historiador Tobias Monteiro traz uma informação pitoresca sobre a intimidade do rei (D. João VI). “Os quartos do Paço de São Cristóvão se abriam para uma varanda. Em sala contígua, ele recebia visitas e despachava com ministros e oficiais. Como a sala era o único acesso ao quarto real, os criados tinham de passar por ela quando esvaziavam os penicos usados por D. João VI. (...) Para evitar constrangimentos, os vasos eram cobertos por uma tampa de madeira, emoldurada por uma cortina de veludo encarnado”.

Voltando a “1822” de Gomes, em outro episódio ocorrido antes da cena anterior, foi do Palácio da Quinta da Boa Vista que D. Pedro saiu às dez horas em 12 de outubro de 1822, acompanhado por D. Leopoldina e pela filha mais velha do casal, a princesa Maria da Glória, rumo ao Campo de Santana. Ali, foi aclamado imperador em uma manhã chuvosa, aos 24 anos completados naquele dia, 15 dos quais passados no Brasil: “Era uma consagração popular como nunca se vira no Brasil. Muitas pessoas se abraçavam e choravam (...) o próprio imperador também chorou”. Outro momento de destaque foi o nascimento de D. Pedro II, em 2 de dezembro de 1825. 

Mary del Priore revela outros detalhes sobre o palácio. “Quando os jovens esposos chegaram ao Palácio de São Cristóvão, o rei disse a Leopoldina: “Espero que este aposento, embora mobiliado simplesmente, vos seja agradável”. As instalações sem luxo algum tinham sido recentemente remodeladas. E a explicação servia para esclarecer o atraso da vinda do admirável mobiliário encomendado em Paris.