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Obras de Maria Martins em SOS: Neto da artista alerta para venda de esculturas desaparecidas

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Obras de Maria Martins (1874-1973), escultora surrealista de fama internacional, presente em algumas das principais coleções brasileiras, como a de Jean Boghici, Roberto Marinho e Sérgio Fadel, são alvo de uma história sherlokiana. A casa onde montou seu ateliê, que pertenceu ao Barão do Rio Branco, na cidade serrana de Petrópolis, tinha espalhadas pelos jardins cerca de 10 de suas esculturas em bronze, mármore e gesso, avaliadas em alguns milhões de dólares. As peças simplesmente sumiram, como descobriu, em 1988,  o neto e único herderdeiro residente no Brasil, Philippe Neiva, músico e empresário, 61 anos. Na época, quem morava ali era seu irmão, Miguel, que morreu em 2005, pouco antes de sua mãe, Anna Maria Martins Pereira e Souza, proprietária do imóvel e das obras. Em 1988 Anna Maria morava nos Estados Unidos, porém conseguiu  localizar algumas das peças através do detetive que contratou. A pessoa que as detinha, entretanto, ameaçou derretê-las, caso fosse feito algo para recuperá-las. Com isso, o caso retornou à estaca a zero. E agora volta a assombrar a família. 

É Philippe quem conta: “Há três meses recebi um telefonema de uma voz chorosa, dizendo que detinha algumas peças de minha avó e precisava que eu autenticasse uma delas, “Comme de liane”, avaliada em torno de R$ 3,5 milhões,  Marcamos um encontro em local neutro. Era a corretora que representava a mesma pessoa que ameaçou minha mãe de derreter as obras de minha avó”. 

Ele respondeu que as obras eram dele e a corretora lhe mostrou um recibo precário por quatro peças, de Cr$ 870 mil, correspondente a cerca de US$ 6 mil. “Era um papel datilografado, que incluía vários itens e sequer trazia o nome da peça, descrita como um bronze com braço torto, características semelhantes a diversas obras de minha avó”, recorda o neto de Maria Martins. 

Foi marcado então um encontro com o ‘proprietário’, cujo nome Phillipe prefere não revelar, a quem ofereceu uma partilha da obra e das demais que ele ainda detém, como tentativa de dar um fim à questão. Embora o advogado Rafael Amorim Abraão tivesse deixado claro que o tal recibo não tinha nenhum valor,  por não conter as informações cabíveis a obras de arte deste porte e por elas pertencerem à filha da artista, Anna Maria Martins, à época da suposta aquisição, as negociações não foram à frente e as peças continuam de posse desta mesma pessoa.

Aos consumidores de arte, Philippe alerta sobre a possível oferta no mercado de peças com valor de U$ 200 mil a até mais de U$ 1 milhão, sem a assinatura de sua mãe. “Peço aos interessados nestas aquisições ou ao mercado de artes  que, ao se depararem com peças de minha avó, me procurem através do endereço eletrônico luizmartins.arte@ hotmail.com. Sou o único que pode validar as obras que foram retiradas indevidamente do ateliê de Petrópolis, por ser o filho e inventariante do Espólio de Anna Maria Martins Pereira e Souza, filha de Maria Martins.” 

De acordo com Philippe, este tipo de situação já ocorreu com obras de arte de sua avó de outras procedências, também desaparecidas. “Dessa vez, entretanto, consegui chegar a alguém que participou de retiradas indevidas (a metonímia foi recomendada pelo advogado, para não dizer furto) do ateliê de Petrópolis. É  apenas a ponta do iceberg “, acredita.  Ele exemplifica a venda feita por sua mãe de uma versão da famosa “O impossível” (foto acima) que estava no ateliê, foi corretamente adquirida por um colecionador e hoje é exibida no Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires (Malba), um dos mais importantes da América do Sul, onde também se encontra a tela “Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Obras de Maria estão ainda no Moma de Nova York, entre outros museus. 

O diretor presidente da Bolsa de Artes do Rio de Janeiro, Jonas Bergamin, esclarece que esta necessidade de autenticar as obras só existe porque elas têm uma origem incerta. “O neto de Maria só foi procurado porque para comerciar as peças o responsável precisa garantir sua autencidade, que não é assegurada pelo tipo de recibo que ele detém. A autenticidade das obras da artista se baseia na origem - como as exposições das quais ela participou - e no exame visual da qualidade da fundição da época. Para evitar este tipo de situação, é preciso catalogar a obra de Maria Martins, como ocorre com Volpi, Portinari e Lygia Clark”, recomenda. A família também já não detém a propriedade da casa na Avenida Rio Branco 279, onde Maria mantinha seu ateliê. Em 2014, o imóvel foi comprado pelo Estado e hoje sedia  filial serrana da Uerj.

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PERFIL 

À frente de seu tempo

A grande importância de Maria Martins para as artes plásticas brasileiras foi sua radicalização na abordagem do desejo, conforme sintetiza Graça Ramos, autora de uma tese de doutorado para a Universidade de Barcelona sobre a artista plástica. “Até sua volta ao Brasil, em fins de 1949, havia uma tradição mais formal na escultura brasileira. Ela apresenta em seu trabalho uma potência do desejo até então inédita, mais construtivista, inclusive na forma de moldar as peças. Ela desorganiza a maneira mais formal como se esculpia até então”, esclarece. 

Nascida em Campanha, Minas Gerais, filha do senador João Luís Alves, também Ministro da Justiça da Velha República, e Fernandina de Faria Alves, Maria se casou pela primeira vez com o jurista e historiador Otávio Tarquínio de Sousa. Foi das primeiras mulheres brasileiras a se desquitar - na época aida não havia o divórcio - e perdeu a guarda da filha, com quem pouco conviveu. Foi enviada pelos pais a Paris, aos 24 anos, onde conheceu e namorou o jovem Benito Mussolini, que até então nada tinha a ver com o fascista que se tornou. “Faço uma menção a essa história no fim de minha tese, mas não existe nenhuma comprovação documental a respeito”, diz Graça. 

Maria voltou a se casar com o diplomata gaúcho Carlos Martins Pereira e Sousa, colega de infância de Getúlio Vargas - de quem a artista se tornaria amiga. Como a mulher, ele gostava de festas e da vida mundana. Carlos Martins foi embaixador do Brasil, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Serviu no Japão - onde Maria se aproximou do Zen budismo -, na Europa e nos Estados Unidos. O casal mantinha uma relação aberta, porém com uma solidariedade em que ambos se ajudavam. 

Quando viajou para a Bélgica, em 1936, Maria começou a esculpir peças de madeira tradicionais, dentro do espírito predominante até então, com o professor Oscar Jesper. Enquanto suas colegas embaixatrizes tomavam chás, ela manteve sua busca pessoal e três anos depois começa a aprender escultura com o lituano Jacques Lipchitz, em Nova York, quando passa a moldar bronze. É aí que nasce sua produção de seres híbridos, que misturam vegetal ao humano, masculino ao feminino, dando início à sua transformação. Faz sua primeira exposição em Nova York em 1939. A mostra de 1943, “Amazônia by Maria”, também em Nova York, é compartilhada com o holandês Piet Mondrian (1872-1944), ele apresentando sua arte abstrata, ela, suas inquietantes esculturas surrealistas. Nessa fase, conhece o francês Andre Bretton, teórico do surrealismo (1896-1996), que provavelmente a apresentou ao francês Marcel Duchamp (1887-1968), um dos mentores do dadaísmo, com quem manteve uma profunda e longa relação amorosa e profissional. 

Em 1946 e 1948 realiza outras exposições importantes em Nova York, usufruindo da companhia da vanguarda artística europeia, que fugiu da guerra para os EUA, onde o embaixador Carlos Martins foi servir, em Washington. Em 1949 seu marido é transferido para Paris, onde faz a exposição “Estátuas mágicas de Maria Martins”, sempre  bem recebida pela crítica. No fim deste ano volta ao Brasil e mantém seu ritmo de exposições no Rio, onde atuou na fundação do MAM, e em São Paulo. Mulher à frente de seu tempo, escreveu três livros, sobre a China - incluindo a entrevista que fez com o líder Mao Tse Tung -, Índia e o filósofo Friedrich Nietzsche.